Elaborado Por: Paulo de Tarso M. Valerio
Introdução
É particularmente difícil para nós, brasileiros, comentarmos sobre África. O que sabemos sobre ela? Se perguntarmos a algum jovem do ensino médio sobre o grande Império de Gana ou Mali, ele saberia responder? Sobre os grandes comerciantes que atravessavam o deserto do Saara, ele teria algum comentário? Ou sobre as duas únicas nações que resistiram à colonização europeia? Possivelmente não. E não são só os jovens que não saberiam. Nós, universitários, não temos ideia do que se passou no continente, além do básico que nos é mostrado de maneira parcial nas escolas: tráfico de escravos e colonização europeia. Porque sabemos tanto sobre a Europa e sobre os Estados Unidos, mas tão pouco sobre a África? Isso ocorre somente no Brasil? Porque nossas livrarias possuem milhares de livros sobre História Geral, mas pouquíssimos sobre África? Onde está a História Africana?
Fomos educados para desconhecer a História da África. Fomos criados com a ideia de que, para conhecer a História Mundial, basta conhecer as civilizações ocidentais. Durante os vários anos de nossa educação, passamos pela África sempre de forma muito geral e estereotipada. Sabemos que os escravos que trabalharam em nossos latifúndios eram africanos e que os grandes Impérios europeus colonizaram o continente, explorando seus abundantes recursos naturais e mão-de-obra. Sabemos brevemente que esses países ficaram independentes e que hoje sofrem de seca, fome, golpes militares, conflitos horrorosos e governos corruptos. Não é à toa que a maioria das pessoas despreza o continente, não tendo qualquer interesse em ir além do que se ouve nas breves chamadas de “mortes em massa na África” anunciadas pela mídia. Aliás, é esta, a mídia, que completa a enorme alienação que nosso sistema educacional nos impõe desde pequenos.
A mídia
Os meios de comunicação são uns dos grandes responsáveis por nossas percepções sobre a África. No Brasil, começamos pelo limitadíssimo número de referências ao continente. Em geral, é somente quando grandes crises humanitárias – como secas devastadoras e fome generalizada – assolam a África que os jornais noticiam alguma coisa. Às vezes, nem isso: quantos conflitos, massacres e genocídios já ocorreram no continente sem que a mídia tivesse se dado ao trabalho de publicar uma nota sobre o assunto? Quantas barbáries já foram cometidas – em geral com forte participação das potências ocidentais – e não tivemos nem ideia do que se passava? A questão fica ainda mais séria quando, além de não informar, os grandes jornais ainda distorcem fatos.
Vejamos a pirataria na Somália. O mundo inteiro ficou sabendo sobre os piratas somalis que sequestravam e saqueavam os navios mercantes que iam da Europa para a Ásia. Muitos se impressionaram com a volta de um dos crimes internacionais mais famosos da história: a pirataria. Mas o que de fato aconteceu? Nenhum noticiário se aprofundou no caso. Se o tivessem feito, teriam visto que, na mesma região, enormes navios pesqueiros europeus e americanos exploravam desenfreadamente as abundantes reservas de peixe. Os pescadores locais, que há séculos vivem na região, acabaram aos poucos perdendo seu meio de subsistência por conta da falta de peixe provocada pelos grandes navios pesqueiros e pelos galões de lixo europeu jogados nas praias somalis. Alguns desses pescadores, sem alternativas e para não morreram de fome, passaram a saquear os navios que ali passavam – uma das atividades mais lucrativas de um país devastado pela guerra civil. O caso exige uma análise socioeconômica e política muito mais complexa do que nos é passado de forma inconteste. Além desse caso, a mídia tão pouco noticia sobre os abusos das indústrias farmacêuticas, ou sobre como a ajuda internacional incentiva a corrupção dos Estados e desmonta produtores locais, ou mesmo sobre o tráfico de armas europeias, americanas e chinesas que abastecem os conflitos.
Mas porque a mídia internacional insiste em reforçar essa visão de uma África pobre, destruída pela guerra, fome e seca? Por que continua a predominar no mundo a imagem de uma África sem saída, cujos governos totalitários e democracias corruptas esvaziam os cofres públicos, deixando sua população totalmente à deriva dos grandes problemas sociais, como a miséria absoluta, o desemprego e a criminalidade? Por que ainda vemos a África como um punhado de tribos que se matam, minando qualquer tipo de desenvolvimento político e econômico? O que está por trás disso tudo? Como pensar de fato o desenvolvimento africano? É sobre essa problemática que traçaremos, nesse texto, algumas breves considerações.
Mudando nossa forma de olhar
Antes de tudo, para compreendermos o nosso objeto de estudo, precisamos seguir a recomendação do economista francês Sergei Latouche, e aplicarmo-nos uma descentralização cognitiva. Isso significa (nos esforçar para) deixar de lado todas essas concepções pré-concebidas pela mídia e por nosso sistema de ensino deficitário e procurar ver a questão africana com uma visão despida de preconceitos, com “olhos africanos”.
Primeiramente, retomemos nossa primeira indagação. Por que sabemos tão pouco sobre a História do continente? Cabe-nos lembrar que sempre predominou na África a tradição oral. Isso significa que as histórias no continente foram passadas de geração em geração, camuflando-se entre mitos, lendas e outras fantasias do imaginário popular. Eram poucos os registros históricos escritos. Até que os europeus chegaram e registraram o que viram, obviamente, sobre suas percepções. Durante a colonização, os europeus trataram de criar uma nova ciência para estudar melhor seus colonizados: a antropologia. No entanto, seus objetivos eram evidentes: legitimar as causas do invasor. Fortalece-se então a ideologia da dominação: o racismo. Ainda hoje herdamos essa visão racista da história africana. Dessa forma, compreendemos que as percepções que temos atualmente da África são resultado da visão eurocêntrica racista dominadora que prevaleceu. Mas os países africanos, após a Segunda Guerra Mundial, conquistaram um a um sua independência. E como ficou essa percepção da História?
O movimento de independência do continente foi bem diversificado. Alguns países travaram guerras sangrentas com seus ex-colonizados, como a Argélia e Angola. Outros conquistaram sua liberdade de forma pouco mais tranquila e pacífica, como Ruanda. Mas de forma geral, todos tiveram um resultado em comum: mantiveram relações de dependência com suas ex-metrópoles. As ex-potências europeias continuaram a ser hegemônicas e influentes no continente, tanto a nível político econômico como a nível ideológico e cultural. No entanto, destacaram-se lideranças intelectuais africanas diferenciadas no continente.
Joseph Ki-Zerbo, história e política
Muitas das lideranças da independência se comprometeram a ir muito além do status quo político. Entre essas, destaca-se Joseph Ki-Zerbo. O intelectual da Burkina Faso revolucionou o pensamento africanista. Empenhou-se, como intelectual e homem político, a lutar pela busca de uma identidade do continente, mostrando que esta é resultado de uma evolução, de um progresso, e de lutas políticas e intelectuais. E tendo percebido que a África não poderia avançar no futuro se não conhecesse seu passado, desenvolveu-se como historiador, inspirando gerações dedicadas a resgatar a riquíssima história do continente e de seus povos. É de seus esforços por uma História da África que descobrimos a importância do continente para o conhecimento da História Mundial. De seus esforços e lutas, herdamos a Coleção História Geral da África – o maior registro historiográfico do continente no mundo. E nós, brasileiros, conquistamos algo ainda maior: uma lei que obriga o ensino de História da África nas escolas em todo o Brasil. Um importante passo para o conhecimento de nossa própria história e para o combate do preconceito racial. No entanto, não foi só a História que Ki-Zerbo revolucionou.
Retomemos então nossos questionamentos iniciais referentes à mídia. Como vimos anteriormente, a mídia desempenha um papel exemplar em construir uma determinada imagem da África. Mas por quê? O que está por trás disso? Ainda nesse texto, vimos que mesmo após a independência, os países africanos continuaram dependentes dos países europeus durante a Guerra Fria. Partamos desse ponto. Com a queda do muro e a consequente vitória dos Estados Unidos, o sistema capitalista prevaleceu. Para a África (e para a maior parte dos países do mundo) isso significou a exigência de entrar nos quadros do novo sistema. O então Secretário Geral das Nações Unidas Kofi Annan declarou que o modelo das Nações Unidas de governo era a democracia liberal, ou seja, com eleições livres e diretas de representantes. Todas as missões de peacebuilding instaladas no continente foram então obrigadas a adotar esse sistema de governo. Além disso, junto com o modelo político vinha o modelo econômico, condição fundamental para a entrada no sistema financeiro internacional – o neoliberalismo. As nações africanas, em sua maioria com altos déficits financeiros, foram obrigadas a adotar esse pacote. É interessante ressaltar que a comunidade internacional prezava (e continua prezando) muito mais o lado econômico liberal do que o lado democrático, como podemos observar no enorme número de ditaduras que, por satisfazerem os interesses econômicos americanos e europeus, são apoiadas e incentivadas por estes. Percebemos então o motivo da ação da mídia: legitimar essa inserção absoluta na ordem econômica internacional através da desqualificação do continente e de suas nações, de forma a mostrar ao mundo a “dependência” dos africanos em relação ao “mundo ocidental”. É exatamente dentro de todo esse contexto histórico que Joseph Ki-Zerbo defendeu sua grande ideia: a África deve ter um desenvolvimento endógeno.
Isso significa que, além de reconhecer sua própria identidade através do conhecimento de sua própria História, o continente africano deve se desenvolver. Para o burkino, todo intelectual deve ser também político. Dessa forma, os pensadores africanos devem pensar e lutar por um meio de se desenvolverem a partir de uma percepção africana. Devem buscar suas próprias soluções para seus próprios problemas e andar com seus próprios pés, sempre mantendo o diálogo com o passado. Isso não significa fechar completamente as portas para o Ocidente. Significa saber dizer não e aprender com este somente o que interessa, recusando os modelos pré-concebidos de desenvolvimento e que nada tem a ver com a realidade africana. Ki-Zerbo ainda complementa destacando a importância da união das nações africanas para essas conquistas, creditando no panafricanismo um meio de dar esse “arranque” para o seu próprio progresso.
Conclusão
Percebemos, portanto, que o discurso da mídia dominante é um discurso legitimador, assim como o foi em outro momento o da antropologia, destinado a manter na opinião mundial a imagem de que a África precisa do Ocidente, que é dependente de sua ajuda política, econômica e ideológica. Que é um continente doente, incapaz de seguir o desenvolvimento por suas próprias pernas, ficando sempre atrás do resto das economias. Mas o que de fato é a África?
A África é um continente de nações que muito aprenderam e muito tem a ensinar. De nações que, de acordo com o próprio Ki-Zerbo, têm uma “(…) vontade feroz de viver, de viver na alegria e na solidariedade com os mais fracos (…)” [1]. Sim, tem seus sérios problemas sociais, mas que é plenamente capaz de resolvê-los por si só, sem a ajuda internacional. É um continente que, através de lideranças fortes e união, deve se conhecer sempre e descobrir suas habilidades e seu próprio meio de se governar e desenvolver. Deve aprender em sua própria história meios pacíficos de resolver seus conflitos, já que, para o próprio pensador burkino, “os povos africanos são geralmente tolerantes e pacíficos, virtudes eminentemente democráticas.”[2]. A África deve aprender a dizer não aos velhos e novos dominadores, livrando sua própria população dos interesses abusivos e opressores das grandes empresas e instituições financeiras internacionais. Deve, enfim, mostrar ao mundo como é possível encontrar novas formas de governança, de resolução pacífica de conflitos e de justiça social através jeitinho eternamente africano: sua solidariedade e amor à Humanidade.
Referências
Boletim Especial CODESRIA. Nos 3 & 4, 2007
Documentário de Dani Kouyaté. Identité pour l’Afrique. Burkina Faso, 2005
PARIS, Roland. At war’s end: Building Peace After Civil Conflict. New York: Cambrigde University Press, 2004
PEREIRA, José Maria Nunes. Colonialismo, Racismo, Descolonização. Caderno Cândido Mendes – Estudos Afro-Asiáticos2. Rio de Janeiro, maio- agosto de 1978.
LATOUCHE, Serge “Pode a África contribuir para resolver a crise do Ocidente?” Trad. Acácio Sidinei Almeida Santos. IV Congresso Internacional de Estudos Africanos, Barcelona 12-15 de janeiro de 2004.
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