Resenha: "Um Jogo Absorvente: Notas sobre a Briga de Galo Balinesa"
GEERTZ, Clifford. Um Jogo Absorvente: Notas sobre a Briga de Galo Balinesa. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
SUENE DANTAS1
(suene.dantas@hotmail.com)
Clifford Geertz (2008) finaliza a obra “A Interpretação das Culturas” descrevendo e analisando os sentidos e significados relacionados com a briga de galo, a partir de sua experiência etnográfica em uma das aldeias de Bali. Com base nas construções interpretativas e sentidos produzidos pelos “aldeões”, e sem fazer inferências pessoais sobre a briga de galo em si, o autor tece interpretações a partir das temáticas que percebe como constituidoras dessa rede de significados, a exemplo da selvageria animal, a morte, o narcisismo, o orgulho, o machismo, a masculinidade, a participação no jogo, a rivalidade de status, a excitação de massa, a raiva, a perda, a beneficência, a oportunidade e o sacrifício sangrento (p. 206 - 210).
A briga ou rinha de galos é uma “atividade pública” de relevância, desempenhada exclusivamente por homens. Na interpretação do autor, a briga pode ser caricaturada como uma guerra “de eus simbólicos” (p. 207), tendo em vista que ali se confrontam os homens, e não os galos. Os galos e as rinhas têm um valor tão significativo para os homens da aldeia, que as suas regras são transmitidas de geração em geração, fazendo com que a “tradição legal e cultural das aldeias” (p. 192) seja mantida. Fora dos campos de briga, por exemplo, os homens e proprietários cedem grande parte do tempo para o cuidado primoroso de seus galos, envolvendo dietas e banhos especiais, treinos e até massagens.
A maneira de categorizarem os galos se expande para o modo como os homens categorizam e classificam uns aos outros. A relação cotidiana e o contato entre os homens são relacionados, metaforicamente, com características negativas ou positivas atribuídas aos galos -como “pomposo”, “desesperado” ou “avarento”-, numa comparação que tem por finalidade elogiar ou insultar alguém, como afirma Geertz (2008): “a linguagem do moralismo cotidiano pelo menos é eivada, no lado masculino, de imagens de galos, Sabung” (p. 189).
Embora as rinhas sejam ilegais (e mesmo assim aconteçam), há períodos (como em datas especiais) que elas são permitidas. Esses são, portanto, eventos de grande porte e acontecem em quase todas as aldeias. Os embates, de modo geral, são divididos em dois tipos. Há o “jogo a dinheiro”, caracterizado pelas lutas insignificantes; e há o jogo absorvente, o mais consagrado e reconhecido, que é interpretado com um “jogo de status” - e que finda por ser “uma simulação formal das tensões de status” (p. 207). Cada jogo tem um tipo de apostador, o qual é classificado, hierarquicamente, de acordo com uma escala sócio-moral.
Em relação ao “jogo absorvente”, o status de quem ganha e de quem perde a briga é, simbolicamente, afirmado ou insultado. Isso não significa que o status é alterado para além da rinha, ele é apenas vivenciado no momento do jogo, que se configura como um descargo intenso de emoções, mas, o que acontece ali, fica ali. Apesar da importância e da carga significativa serem assimétricas, uma coisa em comum entre os dois jogos é que eles abrangem dinheiro. As apostas são classificadas como centrais e periféricas, e nesta variação está implicada a proximidade do apostador com o proprietário do galo, as regras e as quantias.
Sobre a proximidade, poder-se-ia dizer que no jogo absorvente há uma espécie de solidariedade. As apostas nunca são feitas contra os homens que, de que algum modo, encontram-se mais próximos. Geertz (2008) descreve como “subfacções” as diferentes configurações de proximidade, de modo crescente. A subfacção mais próxima é de cunho familiar, significando que não se aposta “contra um galo de propriedade de seu próprio grupo de parentesco” (p. 202), ampliando-se essa lógica para o “grupo de parentesco aliado” e o “galo da aldeia” (p. 202). A aposta se revela, inclusive, como uma ferramenta que sinaliza a reaproximação, com alguém antes considerado “inimigo”, quando numa briga é declarado apoio ao galo do outro.
O alto investimento financeiro também tem o seu peso simbólico, pois o valor apostado representa o risco de outros elementos como “orgulho, pose, uma falta de paixão, masculinidade” (p. 199). Por fim, em torno da briga de galo há toda uma organização, composta pelo árbitro (que possui autoridade absoluta), pela multidão que aprecia a rinha e é composta por homens que seguem as regras mais formais de apostas e aqueles que gerem as apostas periféricas; tudo conduzido com muito respeito e aceitação, independente do resultado do jogo.
Pois bem, essa experiência etnográfica nos possibilita pensar o trabalho de campo e suas nuances, para além da Briga de Galo Balinesa. Assim, retomamos a discussão fomentada no capítulo resenhado por Élida, em que se problematizou a não redução do trabalho sobre Bali ao local estudado. A partir da etnografia sobre o jogo absorvente, é possível pontuar alguns elementos e pistas que nos permitem pensar o trabalho de campo e percursos metodológicos, de modo geral, e (talvez) o modo como conduzimos as nossas próprias pesquisas, a começar pelo processo de inserção em campo e de vinculação com os interlocutores.
Logo no começo do capítulo, o Geertz (2008) destaca a indiferença, a não percepção (e seus correlatos) e a dificuldade que ele e sua mulher encontraram para estabelecer um contato com os nativos, sensação esta compartilhada por muitos pesquisadores. O Roy Wagner (2014), ao descrever a imersão do antropólogo em campo, relata a tendência deste “sentir-se solitário e desamparado” (p. 44), e a necessidade do pesquisador iniciar do zero “como um participante, que começa sua invenção da cultura estudada” (WAGNER, ROY, 2014, p. 44)2. Geertz (2008) nos ensina, pois, um meio de lidar com essa dificuldade, no momento em que ele não força esse contato e aproximação com a comunidade, mas, mostra-se aberto e disponível, possibilitando que o outro tomasse essa iniciativa, como aconteceu após a confusão da briga de galo. Talvez seja importante no processo de imersão em um novo campo, a princípio, sentir o lugar, o espaço e buscar compreender as suas configurações e movimentos, pois, considerando que a nossa presença interfere, de algum modo, no contexto, é bem possível que dessa afetação, experiências e invenções sejam co-construídas.
Outro ponto do texto que chamou a minha atenção foi o modo como o Geertz (2008) descreve o processo de “aceitação” e “abertura” da comunidade (p. 187). A fala do autor sobre a defesa de seu hospedeiro frente ao policial, fez-me pensar numa ambivalência descrição detalhada X anonimato que muitas vezes experiencio durante a análise dos dados. Essa é, na verdade, uma preocupação que atravessa todo o meu processo de escrita da dissertação, pois manter o sigilo dos entrevistados (debate que perpassa pela questão da ética em pesquisa) é algo prioritário e que foi garantido aos interlocutores.
Para quem não pertence à aldeia balinesa, por exemplo, é impossível reconhecer os informantes, até mesmo porque os seus dados e nomes não foram revelados. Mas, para os participantes da pesquisa que leem o trabalho final, por exemplo, identificar os autores através das falas ou relatos, torna-se mais viável. Friso que essa observação não é uma crítica ao Geertz mas, apenas a sinalização de um cuidado que precisamos ter quando construímos a nossa argumentação, de modo a não comprometer o outro ou provocar conflitos através das nossas revelações no texto. E aqui eu não me refiro aos tensionamentos produtivos ou problematizações relevantes para o trabalho, mas, aos possíveis conflitos promovidos na inter-relação dos participantes da pesquisa (aqueles que ficam quando saímos) que, muitas vezes, compartilham o mesmo contexto de trabalho ou moradia.
1 Mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe
2 WAGNER, ROY. A invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012
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