Flávio L. Abreu da Silveira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil
LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. 272 p.
Se o estrangeiro como coloca Simmel é um personagem positivo, se a sua experiência desencadeia um conjunto complexo de relações no local onde se insere enquanto uma figura que interage com o meio social, como alguém que penetra em um ambiente marcado pela diferença daquele de origem e busca desvendá-lo, então, considerar o seu olhar como uma fonte riquíssima de representações acerca do Outro é uma proposta instigante e reveladora de questões fundamentais. Essa parece ter sido a principal tarefa da antropóloga Ilka Boaventura Leite no livro Antropologia da Viagem - Escravos e Libertos em Minas Gerais no Século XIX.
A autora aborda a questão considerando os relatos de viagem como textos pré-etnográficos, ou seja, já estão ali, sob diferentes formas, os elementos que são os precursores da narrativa etnográfica: o estranhamento não tem um caráter metodológico e a imersão no universo cultural do Outro não apresenta uma nítida reflexão de si, enquanto uma experiência de abertura para o diálogo com o Outro, pelo contrário, no caso dos viajantes, o estranhamento e a reflexão são frutos da observação de diferenças que demarcam fronteiras que demonstram maneiras de perceber-se de acordo com padrões próprios da época, ou seja, como oriundos do continente europeu ou norte-americano, letrados, étnicamente diversos e, na maioria das vezes, interessados pelas riquezas minerais, faunísticas e florísticas do Novo Mundo.
A questão dessa forma, implica em considerar os relatos de viagem como a expressão de personagens cujo intuito variava de acordo com a sua formação e os critérios pelos quais suas experiências no solo brasileiro se pautavam. Sendo assim, cada viajante considerado pela autora tinha um interesse em particular: botânico, zoológico, mineralógico, religioso, político, econômico e de lazer.
No entanto, tais questões não impedem que esses personagens realizem um tipo de escrita que os coloca dentro de um gênero específico, de um tipo de narrativa que mescla literatura, diários científicos e de viagens, bem como, de relatos onde certas representações sociais aparecem como maneiras de narrar a experiência de relação com o Outro que é considerado mediante um olhar que o exoticiza e o vincula a um cenário de abundância natural.
O que fica claro é que, mediante a análise criteriosa dos seus relatos surge uma série de possibilidades interpretativas acerca do material que configura o corpo de informações que cada um deles abarca, pois permite compreender a forma como determinados processos sócio-históricos ocorreram numa dada região, no caso, Minas Gerais. Além disso, certamente, nos auxiliam a reconhecer e compreender através de seus relatos de viagem aqueles elementos formadores da cultura brasileira.
Portanto, uma antropologia da viagem pode revelar como o desprendimento, como o abandono do lugar de origem por parte desses personagens desencadeia um encontro com a diversidade, de maneira a permitir que a partir da relação entre proximidade e distância se construa um tipo muito específico de interação na qual as representações acerca do Outro sejam possíveis e apareçam como elementos importantes na construção das narrativas que constituem os seus relatos e diários de viagem, percebidos como resultado de um olhar que decifra uma realidade em dado contexto onde a interação ocorre. Assim, no livro em questão, os viajantes são considerados por uma perspectiva que os concebe como "reinventores de realidades".
O livro da antropóloga Ilka Boaventura Leite, portanto, é uma referência importante para pensarmos alguns aspectos que o colonialismo tomou no Brasil, dado o grande número de informações que a obra traz consigo, acerca dos discursos que forjaram uma imagem do negro no Novo Mundo e que podem ser interpretados como formas de dominação, pois o texto da autora é construído com uma riqueza de detalhes que demonstram a forma com que os diferentes viajantes que passaram pelo estado de Minas Gerais no século XIX manifestaram as suas impressões sobre as condições de trabalho, os costumes e práticas culturais dos negros que ali viviam naquele período. As análises realizadas pela autora dentro desse universo amplo de informações vem acompanhada de uma reflexão em torno da noção de raça e as implicações da mesma nas representações em relação aos negros no Brasil.
Mas, acima de tudo, os relatos de viagem se mostram como elementos fundamentais para compreendermos como um imaginário em torno do exotismo ligado aos grupos étnicos que viviam em meio a uma natureza exuberante, fez com que os povos de países do Hemisfério Norte se reconhecessem enquanto diversos e assim, construíssem e reforçassem uma idéia de si em oposição àqueles de além mar.
Revista Horizontes Antropológicos
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