terça-feira, 6 de outubro de 2015

A Dádiva em Si de Marcel Mauss


Metade da década de 1930. Marcel Mauss tem sessenta anos. No plano profissional é o "sucesso": acaba de ser nomeado professor do Collège de France depois de uma luta acirrada que o opôs ao clã dos católicos e a todos aqueles que não queriam ver a sociologia (durkheimiana) entrar na fortaleza. Mauss é também directeur d'études na Ecole Pratique des Hautes Etudes, Seção de Ciências Religiosas, e secretário do Instituto de Etnologia de Paris, fundado por ele em 1926. Aquele que nunca quis ser um modelo faz "escola" diante de alunos fascinados e desconcertados: "Ele sabe tudo", dizem eles. Nunca ele ensinou tanto: mais de nove horas de aula por semana. Seu brilho é internacional: convite para apresentar a Oxford Lecture, correspondência com antropólogos e sociólogos do mundo inteiro, principalmente ingleses e americanos, etc. É "a glória", como reconhece Paul Fauconnet quando Mauss é convidado para ir a Copenhague em 1938.

Em meados da década de 1930 dá-se a vitória - por longo tempo esperada - dos socialistas, o Front Populaire. Mauss conhece Léon Blum desde a década de 1900. Fiéis a Jaurès, Mauss e Blum militaram no Partido Socialista; no imediato pós-guerra opuseramse à criação do PCF e lutaram para conservar a herança de Jaurès no interior da SFIO. Mauss foi jornalista e administrador do Humanité,colaborou no La Vie Socialiste e participa ativamente, com Blum, da aventura do Populaire. A chegada de Léon Blum ao poder vem de alguma maneira coroar trinta anos de luta.

Tanto no plano profissional como no político, a década de 1930 pode parecer, para Mauss, uma espécie de apogeu. E no entanto... Fissuras aparecem, numerosas: um encargo pedagógico e administrativo muito pesado, problemas de saúde - seus e sobretudo de sua mulher-,dissensões no interior da SFIO e, como pano de fundo, a ascensão do fascismo. No seio de seu partido Mauss está entre os minoritários, com Renaudel e Déat, mas não pretende afastar-se nem filiar-se ao novo Partido Socialista da França em 1935. Já bem menos ativo, o "velho militante" encontra-se imobilizado, paralisado. Por outro lado, as obras que Mauss empreende - a que trata da Prece, mas também as que versam sobre o Bolchevismo e a Nação - ficam inacabadas. Seus trabalhos estão dispersos: "É provisório", queixa-se ele. Mesmo o relançamento do Année Sociologique fracassou e o futuro da nova fórmula dos Annales Sociologiques parece muito duvidoso. O herdeiro Mauss - ele é sobrinho de Durkheim - não consegue fazer frutificar sua herança. Finalmente, no plano pessoal, Mauss defronta-se com numerosos problemas: casa-se tardiamente em 1934 e pouco tempo depois do casamento sua mulher tem de ser hospitalizada devido a um acidente com gás. Mauss, também doente, transforma-se em enfermeiro. Em suma, de um lado a glória; de outro as dificuldades, para não dizer os fracassos.

No momento estou concluindo a redação da primeira biografia intelectual daquele que aparece como o pai da etnologia francesa. Esse trabalho me permitiu descobrir um grande número de textos pouco conhecidos (artigos de jornais e revistas) ou inéditos (conferências, manuscrito sobre A Nação) e também tomar conhecimento da correspondência pessoal (inclusive mais de quatrocentas cartas de Durkheim)(1). Gostaria hoje de 1) traçar um retrato tão completo quanto possível de Mauss - o erudito e o militante - e 2) isolar um dos "fios condutores" de sua vida intelectual e política. Esse fio, como indica o título de minha conferência, é a Dádiva, a dádiva de si.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A Ideologia como Sistema Cultural


Por: Ivan Paulo Silveira Santos[1]
(ivanpaulo73@yahoo.com.br)

Referência Bibliográfica

GEERTZ, Clifford. A ideologia como Sistema Cultural. In: A interpretação das culturas. 1.ª ed. 13.ª reimpr. Rio de Janeiro: LTC, 2008. pp. 107-34.

Segundo Clifford Geertz, há uma espécie de “senso comum” [grifo meu] na compreensão do significado da expressão Ideologia. Esse conceito, em geral, é entendido como uma série de ideias e princípios falsos. Eles são assim compreendidos, porque objetivam a elaboração ou afirmação de privilégios de grupo sobre uma massa de indivíduos. Em outras palavras, a Ideologia seria uma série de assertivas que buscam induzir a erro um conjunto social maior, para garantir os interesses de uma minoria. Essa compreensão não seria em si incorreta, mas incompleta. Afinal, a Ideologia pode sim servir à criação e manutenção de privilégios. Porém, segundo Geertz (2008, p. 107), não unicamente.

A expansão dos possíveis significados para Ideologia depende da compreensão da organização das sociedades. Elas estabelecem um conjunto de regras de convívio entre seus membros. Essas regras determinam o que é certo ou errado, apropriado ou não, enfim, o que é socialmente aceito ou não. A organização das sociedades cria todo um conjunto arbitrário de regras a serem obedecidas pelos seus respectivos membros. Segundo Geertz, esse tal conjunto de regras, que podemos chamar de cultura, nada mais é do que um arcabouço ideológico. Afinal, no que há uma instituição de princípios a serem seguidos, eles são um conjunto de ideias, para serem obedecidas e preservarem determinados interesses. Em um primeiro momento, pareceria a confirmação daquele sentido meio que “senso comum” da Ideologia. Porém, segundo Geertz, justamente o contrário. Ele leva em consideração a seguinte linha de pensamento: ainda que arbitrária, uma norma socialmente aceita representa a forma como aquela sociedade em particular resolveu ou organizou um determinado fato social concreto. Assim sendo, aquela conotação de indução de erro deve ser compreendida como uma forma particular, em que uma determinada sociedade deu a solução de um fato concreto. Por isso, entende Geertz (2008, p. 112) que as singulares culturas, na verdade, representam igualmente singulares ideologias. Elas não são um falseamento, mas uma forma de organização das sociedades.

A distinção entre o “senso comum” e demais sentidos da Ideologia caberia à exploração realizada pelas Ciências Sociais. Ou seja, na análise que a ciência faz de algum fato social concreto. No entanto, Geertz chama atenção ao fato de que ao fazê-lo, as Ciências Sociais podem ser também altamente ideológicas se “supersimplificar” (GEERTZ, 2008, p. 118) suas análises, reproduzindo emoções e preconceitos. Isso pode ocorrer por razões diversas. Em geral, a afirmação de que as Ciências Sociais é uma ciência jovem é razão mais assinalada. Essa característica não permitiria à ciência a “solidez institucional necessária” (GEERTZ, 2008, p. 108) às suas explorações analíticas. O ainda breve tempo de surgimento das Ciências Sociais é uma explicação? Sim. Porém, não completamente, já que a ciência dispõe de meios para evitar este aspecto mais ideológico de suas análises. No entanto, para que isso seja possível, é necessário que seus especialistas se armem de um arcabouço teórico-metodológico mais elaborado e sofisticado. Afinal, aquela “supersimplificação”, que reproduz emoções e preconceitos, ocorre por uma distorção ou incompetência nas análises. Constituir ferramentas de análise próprias – as teorias – que deem conta das regularidades da organização social é, portanto, o elemento chave para se evitar as assertivas mais ideologizadas por parte da ciência.

Entre o “senso comum” e a produção acadêmica, às vezes, a distância pode ser pequena. É o que se pode perceber na análise elaborada por Clifford Geertz em relação ao conceito Ideologia. Em geral, entendido como um conjunto negativo, já que sua própria proposição seria a indução dos indivíduos ao erro. No entanto, afirma o autor, em uma compreensão mais ampla, de certa maneira, somos cercados por distintas ideologias. Essa perspectiva ocorreria à proporção que estamos inseridos em algum coletivo social, que invariavelmente produz sua cultura, portanto, sua própria ideologia. Caberia às Ciências Sociais, em certa medida, separar o conceito do seu “senso comum”. Embora ela própria corra o risco de realizar um papel ideologizante, em razões diversas, por ser ciência recente. Fato a ser evitado através da constituição de teorias conceituais mais elaboradas.

[1] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFS.