domingo, 5 de março de 2017

Resenha de Clifford Geertz - Os usos da diversidade


GEERTZ, Clifford. Los usos de la diversidad. Barcelona: Paidós, 1996, pp. 65 – 92.

Elaborado por: Danielle de Noronha

No texto “Os usos da diversidade”, Clifford Geertz reflete sobre o “futuro do etnocentrismo” e, ao mesmo tempo, sobre o papel do antropólogo nesta questão e sobre os usos e o estudo da diversidade. O ponto de partida é a suposta suavização da diversidade cultural, que dá lugar a um mundo formado por uma “variedade com espectro mais pálido e estreito”, marcado apenas de pequenas e sutis diferenças.

Geertz inicia seu pensamento a partir de um argumento de Claude Lévi-Strauss, desenvolvido no trabalho “Um Olhar Distanciado” (Le regard éloigné) do antropólogo francês. Em resumo, o argumento de Lévi-Strauss, que foi apresentado durante uma conferência da UNESCO de inauguração do “Ano internacional de luta contra o racismo e a discriminação racial”, em 1971, defende o etnocentrismo (utilizando outros termos) como uma ferramenta normal de manutenção das diferenças sociais. Tal raciocínio compreende que determinada cultura se perceba superior às demais e justifica que não seja possível enxergar em outra cultura considerada diferente – e, neste caso, inferior – algo que possa ser útil ou interessante para si própria. Nesse sentido, se naturaliza a diferença entre “nós” (somos quem somos) e “eles” (são quem são), e também o racismo, e coloca barreiras definidas entre as diferentes culturas. Assim, cada pessoa está presa a sua própria tradição cultural e só pode enxergar o outro – e a si próprio – desde esta perspectiva.

Geertz acredita que esse pensamento tem dominado os estudos sobre a diversidade cultural, mesmo que com diferentes abordagens, e que ele acaba apoiando-se na ideia de que a diversidade cultural fornece alternativas a nós em contraste com alternativas para nós. Isso é, outras crenças e estilos de vida poderiam ser adotados por nós apenas se houvéssemos nascido em outro contexto.

Porém, para Geertz, a questão da diversidade cultural deve ser compreendida de outro modo para englobar toda a complexidade que permeia o tema. Em primeiro lugar, para o antropólogo, o consenso universal para questões fundamentais não está próximo. Diferentes culturas e formas de ver o mundo são responsáveis por diferentes opiniões sobre assuntos comuns e isto provavelmente não mudará. Em segundo lugar, por mais que Geertz esteja de acordo de que somos influenciados pelo “nosso” lugar para compreender a nós mesmos e o mundo que nos rodea, ele acredita que o problema do etnocentrismo está em nos impedir de descobrir em que tipo de ângulo nos situamos em relação ao mundo, isto é, nos impede de ampliar a nossa visão e saber quem realmente somos.

O antropólogo pondera que as articulações do mundo social não estão divididas entre um nós perspícuo, com o qual temos empatia mesmo com as diferenças entre nós, e um eles enigmático, com o qual não temos empatia, por mais que finjamos que reconhecemos o direito à diferença. A sugestão de Geertz é que o sentido seja entendido como socialmente construído. O etnocentrismo obscurece as lacunas e assimetrias entre as pessoas e impossibilita que possamos mudar de ideia. Entretanto, a história de todos os povos está relacionada com a possibilidade de mudar de ideia, que também ocorre no encontro entre as diferentes culturas. Entender a diversidade hoje é saber que vivemos um processo de embaralhamento entre as culturas, em que as questões morais e éticas provenientes da diferença estão também dentro de “nós”. Para isso, ao invés de colocar fronteiras entre as diferenças, é necessário apreender o que significa estar no outro e, desta forma, no seu, para assim compreender como é possível contornar uma assimetria moral autêntica, sem necessariamente recorrer ao uso da força, isto é, daquele que possui mais poder. É necessário aceitar e buscar uma incursão imaginativa na mentalidade alheia.

O etnógrafo, segundo Geertz, é o principal conhecedor da mentalidade do outro em nossa sociedade e a etnografia é a grande inimiga do etnocentrismo. Ela coloca nós e eles num mesmo espaço, que de alguma forma já é comum, e não nos separa em diferentes planetas culturais. Para ele, o trabalho da etnografia é proporcionar narrativas e enredos para redirecionar nossa atenção, que nos tornem visíveis para nós mesmos, como parte de um mundo onde existem outros e também estranhezas com as quais teremos que aprender a lidar. E respeitar.

As diferenças podem ter fronteiras definidas, mas estão em espaços sociais irregulares. Geertz sugere que devemos pensar a diferença de um modo diferente, em que as distintas culturas possam ser entendidas como parte de uma grande colagem de diferenças justapostas. E, para isso, devemos fortalecer a nossa capacidade de imaginação e aprender a apreender o que não podemos abraçar.  

GEERTZ, Clifford - A situação atual


GEERTZ, Clifford; RIBEIRO, Vera (Trad.). A situação atual. In: Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

Elaborado por: Daniela Moura Bezerra Silva (PPGS/UFS)

No capítulo cinco da obra Nova Luz sobre a antropologia, Clifford Geertz (2001) se propõe a discutir a situação atual da antropologia, o que faz ao retomar algumas das questões que surgem com a própria delimitação desse campo de estudos e ao analisar os caminhos que esta vem a seguir no decorrer dos anos.
            
Inicialmente, o autor nos lembra que a antropologia foi formada como uma espécie de coletânea de outras disciplinas, um fator que contribui para preservá-la como uma área descentrada. Esse, contudo, não configura seu único problema, existe uma dificuldade ainda maior, a que chamou de “desaparecimento do objeto” (P.88). “Os ‘primitivos’, mesmo dos tipos que celebrizou Boas, Mead, Malinowisky e Evans-Pritchard, são um patrimônio meio desgastado” (GEERTZ, 2001. 89). O que Geertz quer dizer é que não podemos mais falar de uma única temática de trabalho, não há pesquisa isolada.
            
Citando o trabalho de Sahlins sobre os havaianos no século XVIII, Geertz apresenta uma importante reflexão a respeito da condução de nossas análises de campo. Para ele, falar sobre aquilo que não foi dito seria o mesmo que teorizar sobre a consciência do outro, o que nos leva aos seguintes questionamentos: “Como entender as práticas culturais que nos são estranhas e ilógicas? Quão estranhas são elas? Quão ilógicas? Em que reside a razão, precisamente?”(GEERTZ, 2001; 99). A  partir da exposição de autores e correntes, a preocupação do autor é chamar a atenção para uma discussão moral sobre o trabalho do antropólogo.
            
No ultimo tópico do capítulo, Geertz (2001) faz críticas a determinadas posturas das Ciências Sociais – e da ciência de modo geral – uma delas ele chama de universais.  “A maioria dos universais é tão geral que não tem força ou interesse intelectual, é uma banalidade a qual faltam minuciosamente ou surpresa, ou exatidão ou revelação, e que, portanto, tem pouquíssima serventia” (p.125). Para ele, buscar o caráter universal das coisas acaba por deixar de lado o que é realmente produtivo.  Ele chega a mesma conclusão no que diz respeito as generalizações, para o autor, precisamos considerar que trabalhamos com probabilidades, ou seja, uma tese formulada a partir do estudo de uma determinada sociedade que pode não ser aplicada a outra – esta outra é capaz, inclusive, demonstrar uma postura completamente distinta.
            
Notamos, portanto, que Geertz apresenta como preocupação não criar modelos fechados e arbitrários de análise, além disso, o autor faz críticas duras a antropologia e seus rumos que por vezes não percebe o quanto obsoleto determinados termos e posturas se tornaram.









Rogério Azize - Doença e Saúde: a antropologia pode contribuir?


"Doença e saúde: a antropologia pode contribuir?", por Rogério Lopes Azize 

Médicos não são os únicos interessados em refletir sobre doenças e processos de cura. Antropólogos preocupados em estudar a dimensão social das doenças, sofrimentos ou perturbações têm realizado pesquisas que demonstram as conexões entre os eventos de doença/saúde e a cultura na qual tais eventos estão sendo vivenciados. A Comunidade Virtual de Antropologia tem recebido algumas perguntas de estudantes de várias áreas e curiosos em geral a respeito dessa sub-área de pesquisa dentro da Antropologia; este pequeno texto tem somente a pretensão de responder a alguns destes questionamentos e suscitar novas curiosidades, em caráter introdutório.

Grande parte dos estudos em Antropologia da saúde/doença tem como objetivo de fundo demonstrar a existência de outras racionalidades médicas, ou falar sobre o choque entre os sistemas locais e os valores da biomedicina ocidental. Duarte (1998) usa o termo “medicina cientifizante ocidental moderna” para designar a lógica do sistema biomédico; tal sistema e sua interpretação fisicalista das doenças tem pretensões universalizantes, de forma que os males são entendidos como um evento de uma suposta ‘natureza humana’, sem qualquer conexão com características das culturas humanas. A contribuição da antropologia visa buscar compreender os aspectos simbólicos que perfazem não somente os sistemas médicos nativos, mas também as crenças da biomedicina ocidental, problematizando o status universalizante desta última.

Trabalhando em países geograficamente distantes ou relativamente perto de casa, pesquisadores têm se dedicado ao esforço de refletir sobre doenças que apresentam, claramente, limites culturais, como o “mal do coração”, no Irã, o “susto”, em vários países da América Central e do Sul, ou ainda a “doença de nervos”, entre segmentos das classes trabalhadoras no Brasil. Por vezes, essas pesquisas comparam os saberes da biomedicina ocidental com os saberes ‘tribais’ de outros povos; mas é possível construir também modelos comparativos entre diferentes representações veiculadas em nossa própria sociedade, que opõem a visão de mundo das ‘classes médias e altas’ à das ‘classes populares’, ou os saberes ‘científicos’ aos saberes ‘leigos’ (Duarte, op. cit.). Isso significa que, para quem estiver interessado em realizar uma pesquisa na área de saúde, há uma imensa riqueza de temas possíveis, sem falar nas abordagens metodológicas e nos recortes disciplinares disponíveis, que também são vários.

Um pouco mais raros, mas já conformando uma área de pesquisa com produção bastante fértil no Brasil, são os estudos que colocam em perspectiva as práticas da biomedicina ocidental, ou seja, têm como objeto de pesquisa o conjunto de saberes, práticas e técnicas sobre saúde/doença, hegemônicas dentro da cultura ocidental contemporânea, cujos agentes principais são os médicos e profissionais da medicina, incluindo os laboratórios farmacêuticos. Trata-se de um itinerário bastante comum na Antropologia: buscamos primeiro a diferença radical, para depois nos aproximarmos da nossa própria cultura, utilizando o outro como um espelho que nos ajuda no processo de relativização. Contemporaneamente, pesquisas de cientistas sociais estão falando sobre a dimensão social de temas que variam dos anticoncepcionais a transplantes, passando pela concepção de doença, saúde, cura e medicamento.

Minha própria pesquisa, realizada no âmbito de um curso de mestrado em Antropologia Social, versou sobre o uso de medicamentos em classes médias urbanas no Brasil. Discuti, naquele momento, as representações em torno de doenças como a depressão, a disfunção erétil e a obesidade, e também em torno dos remédios utilizados para combater tais sintomas, que já foram chamados pelos meios de comunicação de massa pelo termo “drogas do estilo de vida”, como o Prozac®, o Viagra® ou o Xenical®. A forma como os laboratórios farmacêuticos falam destas doenças são um bom exemplo do caráter universalista que o enfoque biomédico quer ter. São doenças caracterizadas como mundiais, epidêmicas, existindo em todas as culturas e países e já definidas há muito tempo. Mas será que tais doenças são encaradas em todos os países da mesma forma? Sendo ainda mais radical: será que elas existem em todos os países, sendo males socialmente aceitos e reconhecidos?

Não cabe responder a tal pergunta neste espaço. Como já havia dito, tenho somente o objetivo de gerar uma reflexão a respeito das interações entre cultura e saúde/doença. Mas podemos fazer uma pequena reflexão sobre a forma como a “saúde”, agora utilizada como categoria a ser analisada, é pensada em nossa cultura.

Em minha dissertação, faço uma reflexão sobre o rendimento que a expressão “qualidade de vida” possa ter para pensarmos as idéias de saúde e doença entre as classes médias e altas. Na certa, você já ouviu esta expressão, até porque ela parece estar em todos os lugares. Nas fronteiras de uma cultura de classe média, percebe-se uma noção de saúde que já não mais ocupa o posto de contrário à idéia de doença; e uma noção de qualidade de vida que se tornou uma espécie de chave-mágica da sociedade contemporânea, uma palavra-chave que pode justificar mudanças no cotidiano, consumo, novos hábitos e mudanças marcantes no estilo de vida. Se uma ação qualquer vai trazer ao seu agente mais “qualidade de vida”, então esta ação é socialmente justificável; apesar da categoria apresentar um significado nebuloso, seu reconhecimento é imediato na cultura de classe média urbana e o seu uso é bastante freqüente. Na publicidade de medicamentos, na fala de usuários, mas também nos argumentos de venda de inúmeros outros produtos, de empreendimentos imobiliários a um novo sistema de dedetização, o apelo à idéia de “qualidade de vida” solta aos olhos e é repetida com freqüência (Azize, 2002).

Tal discurso não parece estar necessariamente preocupado com a questão da “doença”. As fronteiras entre estados normais e patológicos parecem estar sendo rearrumadas, visto que a intervenção medicamentosa em estados de saúde mostra-se cada vez mais comum. Saúde, não mais um mero oposto a um estado de “doença”, é hoje um termo inflacionado, especialmente, ao que parece, entre as classes médias urbanas com acesso privilegiado aos serviços que poderíamos encaixar num grande bloco como sendo “de saúde”, envolvendo medicamentos, terapias alternativas, programas de exercícios físicos e tantas outras práticas. Sobre a medicação que toma conta do nosso cotidiano, “sua aposta deixa de ser a saúde, que não está forçosamente ameaçada, está em um exagero com relação à saúde, isto é, numa acentuação das capacidades de reação ou de resistência de funções orgânicas com as quais o indivíduo não mais se satisfaz” (Le Breton, 2003:61).

Não faltam referências em obras de ficção científica, na linha das anti-utopias ou críticas a um possível estado totalitário – do Admirável mundo novo de Huxley ao mundo dos replicantes de Philip Dick –, ao uso de pílulas que controlam o humor das pessoas conforme o seu desejo. Cabe uma reflexão sobre a que distância estamos destas imagens, uma vez que o corpo hoje não passa de um rascunho a ser aprimorado (Le Breton, op.cit.) e a melancolia, a gordura corporal, o grau de (hiper-) atividade e a potência sexual, longe de serem um destino controlado pela biologia, são estados que se colocam cada vez mais à nossa escolha. A conexão entre a cultura, a forma como se encara o corpo e estados patológicos que, para utilizar uma expressão perigosa, parecem estar na moda é óbvia demais para ser desprezada e faz por merecer a atenção das ciências sociais. 


BIBLIOGRAFIA

AZIZE, Rogério Lopes. A “A química da qualidade de vida: um olhar antropológico sobre uso de medicamentos e saúde em classes médias urbanas brasileiras”. Dissertação de mestrado em Antropologia Social, UFSC, 2002.

DUARTE, Luiz Fernando Dias, LEAL, Ondina Fachel. Doença, sofrimento e perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.

LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas, SP: Papirus, 2003.

Para um panorama da produção no Brasil das ciências sociais a respeito do binômio saúde/doença, além dos enfoques teóricos possíveis, especialmente no campo da Antropologia Social, ver a introdução de Luiz Fernando Dias Duarte à coletânea “Doença, sofrimento e perturbação: perspectivas etnográficas”, Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.

Rogério Lopes Azize é mestre em Antropologia Social e professor da Universidade Estadual de Santa Catarina.