terça-feira, 21 de novembro de 2017

Nyonga: Rede de solidariedade entre os vendedores de equipamentos electrónicos num mercado da cidade de Maputo


Autor: Mutâmpua, Jorge

dra. Margarida Paulo, (Supervisora)

Resumo 

O presente trabalho analisa as redes de solidariedade construídas entre os vendedores de equipamentos electrónicos do mercado Estrela Vermelha da cidade de Maputo, Moçambique. Na literatura, a rede de solidariedade é olhada em duas perspectivas, uma social e outra económica, mas de forma dissociada como se constituíssem mundos diferentes no quotidiano dos indivíduos, o que se considera problemático neste estudo. Guiado pela teoria de representação social e o método etnográfico acompanhado das técnicas de observação participante e entrevista semiestruturada num exercício de ver, ouvir e conviver com os informantes durante o primeiro trimestre de 2014, verifiquei que a solidariedade entre os vendedores se manifesta através da prática de nyonga, que consiste em vender a mercadoria do outro à preços acrescidos para depois ganhar uma parte do dinheiro da coisa vendida. Este facto representa uma interajuda entre membros do grupo, e os possibilita a acomodarem-se com as novas realidades de vida no dia-a-dia. Desde modo, compreendo que o nyonga é um tipo de solidariedade do quotidiano, usado pelos vendedores como uma estratégia de reprodução de relações socioeconómicas no dia-a-dia. Este argumento distancia-se da visão parcial da literatura, que olha o social e o económico como categorias dissociadas. Portanto, pelo menos no contexto do nyonga estas duas entidades são indissociadas e, ajustam-se à dinâmica de vida da cidade de Maputo.

Palavras-chave: Redes sociais, solidariedade, representação social e nyonga.

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As Estruturas Antropológicas do Imaginário de Gilbert Durand


Professor de filosofia de 1947 a 1956, professor titular e professor emérito de sociologia e de antropologia da Universidade de Grenoble II, é co-fundador - juntamente com Léon Cellier e Paul Deschamps, em 1966 -, e atualmente diretor, do Centro de Pesquisas sobre o Imaginário (Centre de recherche sur l'imaginaire), bem como membro do Círculo de Eranos. Foi participante da Resistência Francesa durante a 2ª Guerra Mundial.

Discípulo de Gaston Bachelard, de Henry Corbin e de Carl Jung, mestre de Michel Maffesoli, Gilbert Durand é reconhecido mundialmente nos meios acadêmicos; seu centro de pesquisa, atualmente, coordena vários outros centros de pesquisa ao redor do mundo, incluindo o Centro de Estudos do Imaginário, Culturanálise de Grupos e Educação (CICE, pertencente à Faculdade de Educação da USP)

A obra de Durand (2002) se apresentou como a base teórico-epistemológica. Durand (2002) apresentou cinco aspectos na compreensão do imaginário e seus efeitoshistóricos e sociais que devemos ter atenção a polissemia dos símbolos, as derivações das distintas recepções nas diversas comunidades, as identificações culturais que dão vida aos símbolos, as flutuações biográficas que guiam os indivíduos e a difusão dos símbolos submetidos a diferentes lógicas socioculturais.

O símbolo e o mito servem com base antropológica pela qual se constrói a significação histórica. Além disso, ele acredita que uma sociedade só se perpetua se as instituições repousam sobre fortes crenças coletivas. 

E segundo Durand (2002) todo o imaginário será devedor de três esquemas básicos, o mítico heróico, mítico místico e mítico dramático. O primeiro sendo derivado das imagens aéreas, de colocar-se de pé, que são imagens masculinas devido a organização a partir das imagens fálicas. O segundo mítico místico seria imagens de escavação, interioridade e das profundezas seriam imagens do universo feminino. E o mítico dramático se configuraria a partir das imagens de movimento, rítmicas, que equilibrariam as forças masculinas e femininas das imagens.

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A Escola Sociológica Francesa e suas presenças nas teorias do imaginário


Elaborado por: Hélder Luís

Primeiro os esclarecimentos. O imaginário ao qual me refiro não designa um fenômeno esotérico ou que se coloque acima do mundo. Ele é a contextura do mundo humano. Para diversificar as possibilidades de entendimento, acrescento que falo de um imaginário social próximo daquilo que Foucault define como episteme ocidental. Um contexto social de saberes que permite a articulação de discursos – palavras, pessoas e coisas - que pondo em contigüidade, fusão e intercruzamentos as positividades, as empiricidades, construindo-as. 

Chamo de “Escola Sociológica Francesa” antes de tudo ao empreendimento intelectual posto pela Escola Francesa de Sociologia, a partir de Durkheim, que é a questão das representações sociais ou categorias coletivas do entendimento. Ao mesmo tempo, ao localizar o enfrentamento dessa problemática em diferentes autores, a exemplo de Foucault, particularmente sua obra intitulada “As palavras e as coisas”, Freud de “Totem e Tabu”, Lévi-Straus, Castoriadis de “A instituição imaginária da sociedade”, Bachelard e Gilbert Durand; o termo Escola Sociológica Francesa passa a designar o meu próprio empreendimento intelectual. Neste artigo abordo apenas o resultado parcial de minhas leituras e reflexões sobre o pensamento de Durkheim, Mauss, Lévi-Strauss e Durand, acerca da problemática do pensamento social. 

ÉMILE DURKHEIM 

Durkheim procura compreender a maneira pela qual, nós, os humanos, reunimos “As palavras e as Coisas”. Assim, ele articula a teoria do conhecimento da realidade social, situando-a no campo simbólico, no espaço das representações sobre o dizer e o fazer social, apreendido pelo tipo de relação que mantemos para com o totem e o tabu. Além disso, em sua teoria do conhecimento, o autor estabelece a hipótese sociológica de que as categorias da sensibilidade e do entendimento, ao contrário da afirmação de Kant, não são inatas, e sim, construídas socialmente. 

Desse modo, a Escola Sociológica Francesa lega a antropologia uma ferramenta de trabalho importante para o acesso às “representações sociais”, ao imaginário, que são os pressupostos teóricos e metodológicos para a análise das categorias do entendimento ou representações sociais. Ou seja, as categorias sintéticas, não enquanto a priori, mas, enquanto historicidades, permanências e metamorfoses.

Ao discutir as “categorias do entendimento”, nas “Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália”, livro no qual Durkheim funda a sociologia do conhecimento, o autor discorda do pressuposto de Kant quanto ao fato de tais categorias serem inatas, e quanto ao aspecto de que o tempo e o espaço sejam apenas “formas de sensibilidade” e não categorias do entendimento, consideradas igualmente inatas na filosofia kantiana. Assim, em um mesmo movimento, Durkheim fundamenta essas categorias na hipótese sociológica e alarga a noção de “categorias do entendimento” de modo a designar as “formas da sensibilidade” como categoria do entendimento e, portanto, “representação social” porque construída socialmente. Assim, o autor lança, desde então, um percurso metodológico que, partindo de uma “etnosemântica” (as categorias) chega a uma “etnocognição” (o entendimento), como diríamos hoje.

A análise das “categorias do entendimento”, enquanto categorias verbais permitem a compreensão do modo pelo qual o grupo em questão compreende, e, conseqüentemente, representa o mundo, às maneiras de pensar que estão associadas às práticas sociais. Entre os fenômenos que nos permitem acessar as “representações sociais” das diferentes sociedades, Durkheim destaca os ritos e os símbolos. Em sua análise as condutas sociais não se dirigem para as coisas em si mesmas, mas para seus símbolos. Quanto aos ritos, ele os classifica em três tipos: 
Os negativos (tabus) – dizem respeito às interdições, ao distanciamento; 
Os positivos (totem) – são atos de comunhão (de proximidade e identificação com o totem) – tais como, as refeições rituais. 
A terceira categoria de rito, os ritos de imitação são ritos miméticos ou representativos, que tendem a imitar a coisa que deseja provocar. 

Os ritos teriam por função proporcionar coesão social, suscitar, manter, e renovar o sentimento de participação no grupo, uma vez que a sociedade só é possível através dos ritos e dos símbolos. Dentre as “categorias do entendimento”, Durkheim analisa as de gênero e de causalidade defendendo a tese segundo a qual classificamos os seres do universo em grupos, chamados gêneros, porque temos o exemplo das sociedades humanas. Estas são tipos de agrupamentos lógicos percebidos imediatamente pelos indivíduos. Desse modo, ampliaríamos às coisas da natureza a prática do agrupamento humano, tendo como referência à maneira pela qual concebemos o mundo social. Assim, de acordo com o autor, é a sociedade humana que fornece o modelo para a apreensão do mundo natural.

As classificações - argumenta Durkheim - são sistemas de noções hierarquizadas e só podem ter origem na sociedade. Assim, é porque os homens estão repartidos que eles repartem o mundo. Sendo a hierarquia um fenômeno social, sua origem não poderia advir da observação da natureza ou do mecanismo das associações mentais. Do mesmo modo, nos diz o autor, a noção de igualdade não pode advir da natureza.

Quanto à noção de causalidade, ela também provém da vida coletiva a partir da idéia de força. É a imagem e a experiência social da coletividade de homens que produz a noção de “força” superior à força dos indivíduos considerados isoladamente. A origem da noção de causalidade é a força coletiva criada pela comunhão dos homens entre si, em situação de trabalho ou de festa. As situações de trabalho ou de festa são particularmente importantes como geradoras da “efervescência social”: troca intensa que se estabelece entre os homens reunidos em torno de idéias e crenças em comum. 

São as representações coletivas, o imaginário social, que pode permitir ao homem elevar-se acima de si mesmo, ou seja, para além de sua condição de isolamento, possibilitando-o apreender a “totalidade” construída e representada por seu grupo, sua sociedade. Ao apresentar a hipótese sociológica, Durkheim pretende superar o empirismo que entende que os conceitos resultam diretamente da experiência sensível; e, o apriorismo de Kant, segundo o qual os conceitos ou categorias são dados inatos do espírito humano. Para o autor, a origem dessas categorias é a vida coletiva. As categorias são representações impessoais porque são coletivas, se impõem porque são coletivas. Elas exprimem a maneira pela qual as sociedades se representam às coisas que lhes dizem respeito e que, portanto, são valorizadas, protegidas, reproduzidas, sacralizadas ou racionalizadas.

A ciência, por exemplo, diz ele, tem autoridade sobre nós porque a sociedade assim o quer. Se hoje basta mencioná-la para obtermos crédito, é porque temos fé na ciência. Quanto à verdade, ela é construída socialmente, como todo e qualquer valor. Desse modo, não basta que algo seja verdadeiro para ser aceito como tal, é preciso, nos diz Durkheim, que se harmonize com o conjunto das representações coletivas vigentes, as arraigadas ou as que estão em ascensão, caso contrário, é como se não existisse. Tudo na vida social repousa sobre a “opinião”, diz ele, assim, para que haja conformidade de condutas é necessário haver “conformismo lógico”: uma certa homogeneidade de entendimento, daí o importante trabalho das “categorias do entendimento” na vida social.

Durkheim não opõe, em sua análise, as crenças e a lógica, como era próprio aos intelectuais desde o Iluminismo. Com isso, ele permitiu que se percebesse a lógica própria a cada crença em particular, além de localizar a crença como base das categorias do entendimento de diferentes grupos sociais, independente das suas características tecnológicas. Ao fazer isto, Durkheim rompe com a perspectiva evolucionista e, ao mesmo tempo, coloca os fundamentos do social e do humano como sendo de natureza essencialmente simbólica, e o simbólico como tendo origem social, portanto, cultural e histórica.

A antropologia, herdeira das hipóteses teóricas apresentadas nas “Formas Elementares de Vida Religiosa”, pôde, desde então, dedicar-se a estudar a lógica das crenças, uma vez que Durkheim evidenciou que o conhecimento é construído em função de “razões” sociais. A Escola Sociológica Francesa é racionalista com Durkheim. Mas, o que é a razão para este autor? Para ele a razão é o conjunto das categorias fundamentais de uma determinada sociedade. A categoria de razão estaria incluída no conjunto citado, sendo, ela própria, uma construção coletiva.

Durkheim é racionalista ainda, porque, contra o empirismo, ele acredita que o mundo tem um aspecto lógico, que se expressa pelo poder do intelecto de ir além da experiência imediata. Acredita que os conhecimentos racionais, lógicos, não se reduzem aos dados empíricos, aqueles que a ação direta dos objetos suscita em nossos espíritos. A sensação empírica é um estado individual explicável pelo psiquismo do indivíduo, diz respeito às representações individuais, ou seja, à construção pessoal que o indivíduo elaborou a partir de seu meio social. A ele interessa, particularmente, as representações coletivas: aquelas aceitas, preservadas e reproduzidas pelos grupos que, através delas, se expressam. 

Para Durkheim o homem é duplo: individual e coletivo. Apesar de duplo, Durkheim não postula pela oposição entre indivíduo e sociedade. Compreende que sendo as subjetividades construídas socialmente, é o próprio indivíduo que passa a identificar-se e a desejar o que a sociedade valoriza. Os conhecimentos racionais, lógicos, e as manifestações afetivas são gerais porque são coletivos (p. 45). Por isso, a razão - que não pode ser considerada universal ou abstrata, porque é sempre relativa aos grupos - ultrapassa o alcance dos conhecimentos empíricos e se impõe definindo e orientando representações e guiando as condutas, sendo, portanto, motivadora de ações.

Esse racionalismo durkheimiano será prolongado em Lévi-Strauss, que “herda” essa fundamentação filosófica e essa temática que será desenvolvida por ele, particularmente nas seguintes obras: “O Totemismo Hoje”, “O Pensamento Selvagem” e a “Eficácia Simbólica”. 

Antes, porém, de abordarmos as reflexões de Lévi-Strauss, é importante nos determos ainda um instante na primeira geração da Escola Sociológica Francesa, examinando a contribuição de Marcel Mauss, sobrinho e colaborador de Durkheim, para a discussão dos fundamentos simbólicos das sociedades. 

MARCEL MAUSS 

Dando continuidade ao programa da escola, Mauss escreve dois artigos importantes intitulados: “A noção de pessoa, a noção de eu” e “Técnicas corporais” fazendo, segundo ele, a “história social” dessas noções, evidenciando o longo processo pelo qual ela foi sendo construída coletivamente. Evidencia que a pessoa é fato moral e que todo fato moral é fato de educação, portanto, a própria noção de moral, bem como, as suas diferentes manifestações são adquiridas por aprendizagens. O autor prossegue afirmando que todo ato educativo é técnica corporal, e que as técnicas corporais são “sistemas de montagens simbólicas”.

Conclui indicando que a noção de pessoa, sendo construída socialmente através de toda uma pedagogia técnica e simbólica que institui o sentido do corpo e de sua individualidade para o sujeito, é uma das formas fundamentais do pensamento e da ação dos indivíduos, sendo, portanto, uma representação coletiva, uma categoria do entendimento; e, como toda categoria do entendimento, ela não é inata.

O axioma sociológico elaborado pela escola francesa apóia-se em dois postulados inter-relacionados: o primeiro, afirma que a origem e o caráter do pensamento é coletivo, porque o homem pensa interativamente com os outros homens de sua sociedade. Essa interação pode ser da ordem da homogeneidade (participação) ou da ordem da heterogeneidade (exclusão, demarcação de diferenças, oposições). O segundo postulado, indica que a pesquisa sociológica deve localizar a parte do social na construção do pensamento, porque essa participação não é evidente por si mesma, uma vez que os processos de “naturalização” do social obscurecem a origem coletiva dos mesmos, criando o efeito de tornar natural, sempre posto e imutável, aquilo que é social e, portanto, histórico.

Do mesmo modo que o falante de uma língua materna não se dá conta que a sua linguagem é fruto de seu grupo social, tendendo a considerá-la “natural”, o participante de uma cultura não vê o modo pelo qual a sociedade configura o seu pensamento e sua conduta. Cabe ao sociólogo buscar os significados profundos, inconscientes da cultura. (A Escola Francesa não distingue a Sociologia da Antropologia)

O programa específico da escola, portanto, era demonstrar o caráter social do pensamento através da análise das “categorias do entendimento”, e, evidenciar a dimensão “ideal”, simbólica, imaginária, dos “fatos sociais”. A simetria entre o concreto e o simbólico é a tese básica da escola que afirma: todo fato de consciência, todo pensamento é fato social, logo, todo fato social por mais objetificado, concretizado, instituído que seja, é fato de consciência, é consciência objetificada, sendo, portanto, da ordem do pensamento. O modo de pensar cria, transforma e destrói e, sendo sociais, as categorias são históricas: surgem, transformam-se e desaparecem. 

CLAUDE LÉVI-STRAUSS 

Lévi-Strauss retomará a busca dos fatos profundos, inconscientes que instituem o social, mas não o fará em perspectiva diacrônica, ancorado em uma “história social”, a exemplo do método histórico preconizado por Mauss. Ele retomará a busca desses fatos do ângulo da sincronicidade, através das “categorias do entendimento”, enquanto categorias lógicas, sem remetê-las à investigação da historicidade que as constituíram. Enfatizará o plano das articulações lógicas e das dualidades estruturais: a natureza e a cultura, o sagrado e o profano, o puro e o impuro, o próximo e o distante; remetendo-as, ao nível meta-teórico, à estrutura do “inconsciente”. 

O “inconsciente”, para ele, resulta do funcionamento do cérebro que, desse modo, é visto como um formante, um estruturador que não visa fins práticos ou utilitários, mas, sistema e ordem. Entretanto, em sua proposta metodológica a identificação da lógica não é buscada arbitrariamente em um suposto mundo arquetípico. Bem ao contrário, ela deve ser apreendida através de uma etnografia minuciosa, fenomenológica, que visa dois objetivos:

1. Identificar as “representações conscientes”, pois são via de acesso para as “representações inconscientes” que serão identificadas pela análise estruturalista. 

2. Perceber de que modo esse conjunto elabora sistema, pois não são automaticamente estruturas, são, antes documentos para ajudar a descobri-las.

As “representações conscientes” são expressas por diferentes objetivações do pensamento social: pela linguagem, pelo comportamento, pelas regras, ritos; pelas genealogias, planos de aldeias; usos do corpo, códigos alimentares e matrimoniais, enfim, por inúmeros e variados “documentos etnográficos”. A estrutura, entretanto, não é da ordem do empírico, é da ordem do pensamento, não corresponde diretamente a nenhuma realidade objetiva. A estrutura que a análise estruturalista desvenda é de ordem lógica. Diz respeito aos sistemas de constância dos elementos e ao caráter de relação que se estabelece entre ele e os demais elementos, bem como, aos modos de transformação pelos quais eles se configuram.

A obra de Lévi-Strauss constitui importante instrumento de percepção do imaginário social em sua estruturação lógica, permitindo a visibilidade das constantes estruturais que organizam os universos de sentido. 

GILBERT DURAND 

A teoria desse autor é um complexo diálogo entre a reflexologia, a fenomenologia estruturalista e a fenomenologia hermenêutica, além do Existencialismo, entre outras influências. Tomaremos como ponto de partida a definição de imaginário proposta por Durand, para, a partir dela, ancorar uma indagação que funcione como eixo de nossas reflexões tanto de fundamento quanto de método. O imaginário, segundo Durand (1997), é o conjunto das imagens e das relações entre imagens que constituem o capital pensado do sapiens; assim, ele remete o imaginário para as imagens e para os nossos procedimentos de produção de imagens. Esta definição nos impõe uma indagação: o que é a imagem? Ela é representação, esquema, arquétipo? 

Para Durand, a estrutura é encontrada ao nível do esquema que, por sua vez, é anterior a imagem. A estrutura é originada nos gestos primordiais dosapiens, que, seguindo Piaget, ele chama de esquemas de motricidade ou tendência geral dos gestos enquanto intenção, embora inconsciente, que formata as operações lógicas, ou seja, os tipos de relação que o sapiens estabelece com o mundo, a partir de sua corporeidade. O esquema leva em conta as afeições e as emoções e faz a junção entre os gestos inconscientes e as representações. Algumas das ligações lógicas resultantes dos esquemas de motricidade são: separar, típico da estrutura heróica; unir/fundir, próprios a estrutura mística. 

O arquétipo é a representação dos esquemas. Para a subida, por exemplo, temos os arquétipos - chefe e alto. Para o aconchego, os arquétipos mãe, colo e alimento. Já o símbolo é todo signo concreto, evocando algo ausente ou impossível de ser percebido. O mito é um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas que tende a se compor em relato – história, por isso ele já é um início de racionalização. O mito vai transformar em linguagem, em relato, as escolhas culturais, e, o relato, organiza o mundo, estabelece o modo das relações sociais, e seus personagens vão servir de modelo para a ação cotidiana dos indivíduos. 

Em Durkheim e Mauss, a teoria social se afasta da Biologia e compreende o pensamento enquanto construção coletiva. Com Lévi-Strauss e Durand, sem ignorar o social, voltamos ao biológico. O primeiro retém do biológico apenas o cérebro, entendido como um formante de estruturas binárias, complementares e opostas, que funcionam como estruturador lógico para as elaborações culturais. Durand considera que toda a corporeidade, bem como, a sociabilidade, participam na estruturação do pensamento.

Durkheim e Mauss compreendem a realidade humana como construção virtual, dispositivo, “sistemas de montagens simbólicas” na bela e competente expressão de Mauss. Essa noção pode ser aproximada do “dispositivo maquínico” e do “agenciamento coletivo” de Guattari, para acentuar a atualidade das formulações da primeira geração da École, que escreveu no início do século.

Lévi-Strauss e Durand vão articular o social ao substrato biológico, evidenciando outro aspecto do debate que é o diálogo interdisciplinar. É bem verdade que a Antropologia é interdisciplinar desde a fundação da “Escola”, Mauss, inclusive, estabelece a noção de “fato social total” para demarcar a necessidade de o antropólogo considerar todos os aspectos do fenômeno que estuda: econômico, político, biológico, psicológico, religioso, estético. A diferença está na escolha quanto às disciplinas consideradas no diálogo que os autores desenvolvem.

Lévi-Strauss, por exemplo, não aprofunda o diálogo com a Biologia, sua hipótese encontra argumentos na lingüística de Saussure e na Cibernética; a Biologia participa como meta-teoria, pois ele acredita que em função da universalidade da lógica binária, inclusive no pensamento selvagem, aquele ainda não informado pela herança Ocidental, deve haver homologia entre a natureza – o mundo orgânico (sabemos que ele é químico, elétrico, magnético e computacional) e o modo de funcionamento do cérebro; do contrário, como seria possível o isomorfismo das produções do “espírito” humano, entre nós e os “primitivos” e, entre essas duas metades da humanidade e a materialidade do mundo?

Durand dialoga com a Reflexologia, com a Epistemologia Genética de Piaget, com o Estruturalismo de Lévi-Strauss, com a Psicanálise (Freud), com a Cosmovisão de Bachelard e, com a etnografia; construindo um empreendimento complexo, ao qual pretendemos dedicar estudos mais completos.

Se, no início do século, Durkheim ao contribuir decisivamente para o estabelecimento da Sociologia, o faz “heroicamente”, pelo corte, separando-a da Psicologia Introspectiva e da Filosofia Social, no programa mesmo da Escola, a noção de “fato social total” preconiza a abordagem interdisciplinar para a elucidação do “fato social”. Mesmo porque, a interrelação entre o “soma” e a “psiquê”, foi objeto de análise de Mauss, em seu artigo sobre o “Efeito físico no indivíduo da idéia de morte sugerida pela coletividade” para compreender os casos em que o indivíduo se deixa morrer porque acredita que, de acordo com o padrão do grupo, ele, por transgressão ou ataque psíquico de inimigos, não pode continuar vivo.

É também Marcel Mauss – fortemente ligado à História Social (ao contrário de seu tio Durkheim que inaugura o funcionalismo-estrutural na França) – e, também interessado nos aspectos afetivos da sociabilidade, quem retomará o diálogo com a Psicologia, através de um outro artigo que trata das “Relações reais e práticas entre a Sociologia e a Psicologia”, projeto que será retomado por Roger Bastide em “Sociologia e Psicanálise”. Ou seja, há um intenso e intrincado debate interdisciplinar em torno da constituição mesma do pensamento humano, entendido enquanto imaginário social, e da relação entre grupo e indivíduo. Esse debate perpassa a produção da Escola e encontra eco na produção de vários intelectuais franceses contemporâneos. 

REFERENCIAS BIBLIOGRAFIAS

CEMIN, Arneide Bandeira. Entre o cristal e a fumaça: afinal o que é o imaginário? in Presença. Porto Velho, Universidade Federal de Rondônia, Ano VI, No. 14, 1998.

DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo, Cultrix, 1988.

________. As estruturas antropológicas do imaginário, São Paulo, Martins Fontes, 1997.

________. O imaginário: ensaios acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro, Difel, 1998.

DURKHEIM, Émile. Sociologia e filosofia. São Paulo, Ícone, 1994.

________. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo, Paulinas, 1989.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1995.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa, Edições 70, 1985.

________. Antropologia estrutural. Rio de janeiro, Tempo Brasileiro, 1975. (Vol. I e II).

________. Totemismo hoje. São Paulo, Abril Cultural, 1985.

________. O pensamento selvagem. Campinas, Papirus, 1989.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo, EPU/EDUSP, 1974. (vol. I e II). 

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Geração Cabeça-Baixa e a Realidade Interseccional


A relação com a tecnologia na vida contemporânea, diferentemente das gerações passadas, quando podia-se optar por assistir ou não a TV, não nos deixa a escolha de ‘não integrar-se `a vida digital’ (desde o sistema bancário de emite holerits, até a escolha do medico no seu plano de saúde, é agora feito exclusivamente pela internet, o que significa que quem não está na rede se encontra excluído de dimensões sociais essenciais na vida de qualquer um), as formas de relacionar-se com esta tecnologia e com as pessoas, que são em última instancia, a rede, são inúmeras, tal qual as relações na vida real.

Mas uma delas é comum a praticamente todos os jovens, que mesmo quando resistem a ela, estão vivendo-a, pois se posicionam em relação `a mesma – A Vivência da Realidade Interseccional. Num bar, numa reunião de negócios, nas aulas da faculdade, ou mesmo na intimidade do casal, o smartphone parece uma extensão do corpo do usuário ao qual ele precisa recorrer em intervalos controlados de tempo. A sensação de ‘perda’ do momento presente quando a pessoa não se conecta `a rede para ‘saber o que está acontecendo’, seja checando emails, entrando no Facebook para ver quem comentou seu post ou quem está online, no Twitter para saber quem está onde fazendo o que, no Instagram para ver quem está no lugar mais legal, com quem, fotografando o que, entre muitas outras possibilidades que diferem de acordo com o interesse e valores do usuário, é a sensação de exclusão, seqüestro da realidade e falta de controle sobre ela.

Um jovem pode passar a semana planejando ir a uma festa descolada onde vai encontrar sua paquera e curtir com seus amigos, mas tão logo ele chega na festa, você o encontra, em diversos momentos – e entre alguns jovens, na maior parte dos momentos – de cabeça baixa, olhando para um artefato tecnológico na palma de sua mão que o poupa da sensação de falta de controle e vivência totalizadora, real, do momento presente. Ele está no lugar que queria, com as pessoas que queria, curtindo a realidade palpável que queria, mas, a noção de vivência da REALIDADE, de experienciar momento presente , apenas se torna fato para ele, quando o real offline e o ‘real online’ estão ao seu alcance, constituindo o conceito que denomino REALIDADE INTERSECCIONAL’, uma pára-realidade, constituída a partir das necessidades e percepções geradas pela era da internet, que constitui o ‘real de fato’ para as gerações atuais e influenciam gerações anteriores.

A REALIDADE INTERSECCIONAL é como uma nova forma de estar e vivenciar o mundo, a vida, as pessoas. Ela não é uma escolha, ela é um sistema que se engendra por um processo. Ela se torna parte da vida das pessoas sem que elas percebam. Ela é criticada pela maior parte das pessoas, mas as mesmas não a abandonam, no máximo, tentam controlar seus impulsos de buscar a totalidade da vivência interseccional acessando a internet para amenizar a sensação de obsolescência – algo está acontecendo ‘na rede’ e eu nnao estou sabendo, logo, eu não sou parte disso, eu me sinto excluído, eu preciso me integrar para que a sensação de falta de controle acabe.

Jean Baudrillard[2] falava da TV como uma atividade de conluio entre os telespectadores que, ao assistir ao jornal no horário nobre, se sentiam parte de um todo e vivendo um processo de integração e experiência do social. A internet, em especial as redes são este conluio exponencial que se torna vivência essencial na sociedade contemporânea. Consumimos a rede como consumimos a cultura, a arte, a musica, o ar, a comida, entendendo o consumo como um processo de fruição por meio do qual nos relacionamos com as pessoas, nos identificamos, nos diferenciamos e nos integramos por meio de nossas escolhas de bens tangíveis e intangíveis.

Mas sobretudo, na rede, consumimos aquilo que nos é mais precioso: a nós mesmos e `a pessoas. Nos tornamos o mais notável produto exposto em perfis a ser percebido, analisado, escolhido ou não e assim também nos relacionamos com outrem. Note-se que, como uma cientista do consumo, não concebo o tema consumo como um acordo frio e mecanicista que trona pessoas coisas sem humanidade, mas um processo onde coisas são instrumentos de relações humanas entre pessoas e representam o mais humano e relacional, constituído a partir de emoções, imaginário valores permeiam estas relações. Consumimos na redes avatares que se constituem como totens dos valores mais profundos que constituem a visão de mundo, a perspectiva sobre a realidade e orientam o comportamento na vida social. A rede são as pessoas `as quais nos conectamos num sistema de trocas simbólicas, tal qual entre os povos primitivos, num sistema de signos, significados, mitos, ritos e comportamentos que representam ordens sociais, cultura e engendram formas de ser e agir no real offline.

Theodor Adorno escreveu que “A Industria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores”[3]. A indústria digital é a nova industria cultural, é o meio como mensagem de MacLuhan, que integra pela mensagem que não necessita de palavras, do engajamento pelo código cultural manifesto – não é mais ‘o que se diz’, mas os diferentes grupos culturais, integrados na web, se definem e diferenciam por ‘como se diz’.

Fonte: ANTROPOLAB

terça-feira, 14 de novembro de 2017

IESE lança “Desafios para Moçambique 2017”


O Instituto de Estudos Sociais e Económico (IESE) lançou em Setembro, o livro “Desafios para Moçambique 2017”. O lançamento será feito no decorrer da 5a Conferência Internacional do IESE que teve lugar entre os dias 19 e 21 de Setembro de 2017 em Maputo.

Oitavo, da série “Desafios para Moçambique”, iniciada pelo IESE em 2010 e cujo objectivo é contribuir para o debate público sobre temas considerados relevantes para Moçambique, este livro tem a particularidade de ser lançado no ano do décimo aniversário desta instituição de pesquisa.

Em virtude disso, o “Desafios para Moçambique 2017” procura fazer um balanço do contributo intelectual do IESE ao longo dos últimos dez anos, localizando a sua investigação no contexto mais geral da literatura e debate sobre os temas focados, identificando o ciclo de investigação em que cada tema se encontra, sistematizando os contributos intelectuais e para o debate público nacional, e visualizando os caminhos futuros da investigação do IESE.

Como é habitual, o livro está organizado em quatro secções, nomeadamente política, economia, sociedade e Moçambique no mundo, e contém quinze artigos produzidos por catorze investigadores permanentes e associados do IESE.

Fonte: IESE

Carlos Pimenta - Desafios para Moçambique


Referência(s):

Luís de Brito, Carlos Castel-Branco, Sérgio Chichava, António Francisco (org.) (2011). Desafios para Moçambique. 2011, Maputo: Instituto de Estudos Sociais e Económicos

1. Desafios para Moçambique. 2011 é um livro recente organizado por Luís de Brito, Carlos Nuno Castel-Branco, Sérgio Chichava e António Francisco, com a participação de dezoito autores, produzido e editado pelo IESE – Instituto de Estudos Sociais e Económicos. Este instituto funciona em Maputo (Moçambique) e está aberto ao mundo através da sua página www.iese.ac.mz.

2. É o segundo ano consecutivo que o IESE lança um livro sobre Moçambique, que pretende intervir “sobre algumas das grandes questões que a sociedade moçambicana enfrenta, ou deve enfrentar”. É uma obra de intervenção política, que foi estimulada pelas reacções registadas quando do lançamento do livro referente a 2010: “as numerosas intervenções registadas … mostraram que, particularmente no seio dos jovens, a preocupação com os problemas do país alimenta o espírito de cidadania, não obstante um aparente desinteresse pela coisa pública”. Uma obra de intervenção política que não é politiqueira, conjuntural, ao sabor da ocasião, mas antes rigorosa, científica, gerando um “debate tão abrangente, inclusivo, pluralista, multidisciplinar, heterodoxo, inovador e útil quanto possível”. Gerar esse debate é “um dos papéis fundamentais dos intelectuais e investigadores na luta pela conquista, construção e exercício da cidadania” (p. 15), que em primeiro lugar tem de ser exercida no seu próprio país.

3. O tema central da obra é o Estado que, nas palavras dos autores, tem de responder “às necessidades do conjunto da sociedade e não apenas aos interesses de um pequeno grupo” (p. 16). Essa temática é brilhantemente iniciada por um texto de Óscar Monteiro que, a partir da “artificialidade histórica da construção do Estado em África” (p. 16), analisa a possibilidade de uma “refundação do Estado” de baixo para cima, assente na descentralização e na participação. O autor, caldeado na sua longa experiência política e na sua actividade de académico, levanta situações, formula problemas e lança desafios que, centrados sobre Moçambique, são universais e especialmente pertinentes para todos os países africanos.

4. Seguem-se-lhe dois outros artigos que analisam as experiências concretas de descentralização e um outro que trata da legislação eleitoral.

5. Porque o trabalho do IESE é multidisciplinar, muitas vezes capaz de criar novas problemáticas e de as abordar com a participação unificada de diversos saberes, após este primeiro grupo de textos sobre “Política” seguem-se outros sobre “Economia” e “Sociedade”, todos eles encastrados no tema central da obra. Os cinco estudos económicos analisam um tema central no mundo contemporâneo, particularmente acutilante em África, dada a sua dependência da ajuda externa: o financiamento do Estado. “[N]um contexto em que a decisão sobre políticas não é independente do financiamento externo, quando não é mesmo directamente condicionado … cria-se … uma situação em que o governo tende a ser mais reactivo e prestador de contas à «comunidade doadora» que aos seus cidadãos” (p. 17).

6. “Moçambique no mundo” é o objecto da quarta secção. Nela se detecta, entre outros aspectos, o conflito entre as necessidades do país e o tipo de relações externas: embora a agricultura seja, para Moçambique, a área prioritária para a cooperação, os investimentos externos “estão principalmente direccionados para a indústria extractiva e a construção” (p. 19). Na sequência desta constatação, defendem que a ajuda externa, enquanto necessária, deve “ser usada de forma a criar capacidades produtivas internas «diversificadas, articuladas e sustentáveis, capazes de alimentar a economia e satisfazer as necessidades objectivas do consumo social», cabendo ao Estado um papel de direcção estratégica do processo” (p. 19).

7. Estamos, em síntese, face a uma obra que é a resposta ao “desafio da construção de um Estado democrático” (p. 19), em que fica em aberto o que se entende por “Estado democrático”, cabendo a cada autor, na pluralidade e liberdade de conceptualização e intervenção, a apresentação científica da sua posição.

8. Feita a breve apresentação desde livro de leitura obrigatória para quantos se preocupam com a natureza do Estado em África, cabe dizer algumas palavras breves sobre o IESE, embora tudo o que possamos dizer esteja plasmado no seu sítio informático.

9. O IESE é uma organização moçambicana independente e sem fins lucrativos, cuja missão é a “promoção de investigação social e económica de alta qualidade e relevante sobre as problemáticas de desenvolvimento, governação, globalização e política pública em Moçambique e na África Austral, privilegiando uma abordagem de economia política, interdisciplinar e heterodoxa, e criando um espaço pluralista de estudo, debate e difusão de conhecimento e informação”.

10. O seu trabalho de investigação e divulgação tem sido notável desde a sua constituição em 19 de Setembro de 2007, sempre orientado por uma postura de rigor, interdisciplinaridade e heterodoxia, de reflexão crítica sobre a sociedade.

11. Centrados sobre Moçambique, analisam o mundo e lançam debates, reflexões e hipóteses de soluções que são universais.

12. Ao apresentarmos estas breves notas de leitura, esperamos estar a contribuir para que outras instituições com preocupações similares estabeleçam relações de cooperação com o IESE, reforçando um diálogo em rede, sobre África e em África, que é fundamental.

Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Carlos Pimenta, «Desafios para Moçambique », Revista Angolana de Sociologia, 7 | 2011, 197-198.

Referência electrónica

Carlos Pimenta, « Desafios para Moçambique », Revista Angolana de Sociologia [Online], 7 | 2011, posto online no dia 13 Outubro 2016, consultado no dia 14 Novembro 2017. URL: http://ras.revues.org/1244

Autor: 

Carlos Pimenta

Economista. Doutor em Economia e Professor Catedrático na Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Fundador e investigador do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto. Fundador e director do Observatório de Economia e Gestão de Fraude. Tem como áreas fundamentais de investigação a globalização, o desenvolvimento em África, a economia subterrânea, a fraude, a interdisciplinaridade e a epistemologia da Economia. É autor, dentre outros, dos livros Globalização: Produção, Capital Fictício e Redistribuição, Ideias. Economia (2004), Pensar a Economia (Exercícios de Economia) (1993/1996), Salários em Portugal (1989), Economia Portuguesa. Uma Experiência, uma Análise (1984), Como fazer o Controlo de Produção (1983), Os Monopólios e a Política Antimonopolista no Portugal de Hoje (1975) e co-autor de Um Olhar sobre os Rankings (2004), A Estratégia Nacional de Portugal desde 1926 até 2000 (2002), La stratégie nationale du Portugal de 1926 à nos jours (2000), Curva de Phillips em Portugal (1983).

pimenta@fep.up.pt

sábado, 11 de novembro de 2017

O Suplício do Papai Noel de Claude Lévi-Strauss


Fundador da antropologia estruturalista, o francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) é um dos cientistas sociais mais importantes do século passado. Trabalhou na recém-construída Universidade de São Paulo, para a qual Célestin Bouglé (o então diretor da Escola Normal Superior da França) lhe propôs apresentar sua candidatura acreditando haver milhares de índios nos subúrbios paulistanos. A possibilidade de trabalhar no Brasil agradava Lévi-Strauss pelo fato de ultrapassar a filosofia especulativa de sua formação e se dedicar empiricamente a jovem disciplina de etnologia. Em três anos no país ele conheceu e estudou algumas etnias indígenas, experiência que ficou descrita principalmente em seu livro Tristes Trópicos. Em 1939, voltou à França, mas devido à ocupação nazista, buscou exílio nos EUA, país em que fora obrigado a encurtar seu nome para evitar a confusão com a marca de jeans homônima. Segundo conta François Dosse, não havia um ano em que ele não recebia um pedido de encomenda de jeans para África (1993, p. 32-33). Com o término da guerra, agora já retornado ao seu país, foi nomeado, em 1959, para a cadeira de antropologia social do respeitado Collège de France, universidade onde lecionou por mais de 20 anos.

O suplício do Papai Noel é um ensaio curto em que Claude Lévi-Strauss analisa um curioso acontecimento de véspera de natal na França. Em 24 de dezembro de 1951, nas grades da Catedral da cidade de Dijon, Papai Noel foi queimado publicamente, contando ainda com a presença de centenas de crianças dos orfanatos locais. A execução simbólica foi incentivada pelo clero que “condenara Papai Noel como usurpador e herege. Ele foi acusado de paganizar a festa de Natal e de se instalar como um intruso, ocupando um espaço cada vez maior”, registra o jornal France-Soir, de 1951. O post que se segue é um resumo do ensaio de Lévi-Strauss e me será útil para comentar (num próximo texto) sobre um recentíssimo acontecimento no Brasil, que alimenta a discussão entre ateus e religiosos sobre a liberdade de expressão.

O acontecimento em Dijon gerou polêmica e dividiu a opinião pública. Um estranho paradoxo foi notado por Lévi-Strauss nas discussões. Os anticlericalistas, geralmente cientificistas, defendiam Papai Noel, logo, o irracionalismo e a superstição, enquanto, por outro lado, a Igreja se posicionou ao lado da racionalidade e do espírito crítico. Mas ninguém se perguntou afinal por que os adultos inventaram Papai Noel. É a esta questão que o ensaio antropológico se direciona. Para respondê-la, Lévi-Strauss realiza uma longa digressão que passa a explicar a eclosão do festivo natalino na França, a gênese histórica do Natal moderno e a função sócio-estrutural a qual esse rito se presta.

Com a melhora econômica da França após a II Guerra Mundial, houve uma mudança na comemoração de Natal que se explica, em parte, pela influência e prestígio dos EUA em terras galesas. Isto podia ser observado na época pelos inúmeros pinheiros, adornos em papéis de presente, cartões, Exércitos da Salvação e pessoas trajadas de Papai Noel nas lojas. Contudo, seria simplista explicar apenas pela influência americana. Outras razões apontadas são os muitos estadunidenses que moravam na França e comemoravam o Natal à maneira yankee; os cinemas, as revistas e os romances que tornaram o costume conhecido; o prestígio dos EUA devido a seu poderio militar e econômico (modelo portanto espelhado por outras sociedades ocidentais); o Plano Marshall e a importação de mercadorias de Natal. Por outro lado, poderia se objetar que as camadas economicamente mais baixas da sociedade que desconhecem a origem desses ritos, bem como os meios operários sob influência comunista, que rechaça o “estilo de vida americana”, adotaram o costume como qualquer outro grupo social. O antropólogo explica então que não se trata de uma difusão simples, mas, como anotou Kroeber: uma “difusão por estímulo”. Invés de o costume ser assimilado por importação, ele provoca o “surgimento de um uso semelhante ao que já estava potencialmente presente”. A metáfora segundo a qual a planta só pode germinar em solo fértil é bastante instrutiva para ilustrar o caso. Por exemplo, um fabricante de papel viaja a negócios aos EUA e lá descobre um papel de presente muito mais elaborado do que o que ele vendia. A dona de casa o compra por lhe satisfazer uma exigência estética, isto é, uma disposição afetiva, já existente, se materializa com o adereço encontrado.

Embora haja traços arcaicos, a festa natalina moderna ascendeu na França antes da Segunda Guerra. No século 19, o pinheiro chega ao país. O verbete noël designa, em um dicionário da época, um ramo de pinheiro com enfeites, guarnecido de balas e brinquedos, que se oferece a crianças. A variedade de nomes que se dá àquele que distribui os presentes (Papai Noel, São Nicolau, Santa Claus) mostra que a figura é resultado de convergência e não de protótipo conservado. A comemoração que teve apogeus e declínios, expressa em sua versão americana apenas uma encarnação mais moderna. Papai Noel, especificamente, é uma criação recente, e mais recente ainda é a crença de que ele vive na Groelândia; fato este que obriga a Dinamarca (dona do território) a manter uma agência especial dos correios por lá, só para receber cartas do mundo todo destinadas a Papai Noel. Acredita-se que essa crença foi difundida durante a estadia de tropas americanas na Groelândia e Islândia durante a Segunda Guerra Mundial. Todavia, as renas já apareciam em documentos renascentistas (sécs. 14-16) como troféus durante as festas natalinas. São partes dos elementos históricos de uma tradição que se funde e se refunde.

Analisado pela simbologia antropológica de Lévi-Strauss, Papai Noel, ao vestir vermelho, é um rei. Botas, roupas pesadas, peles, barbas brancas e trenó evocam o inverno. Sua idade revela a forma benevolente da autoridade dos antigos. Não é um ser mítico. Mas sem dúvidas pertence à família das divindades. As crianças prestam-no culto em certas épocas do ano sob a forma de pedidos e de cartas. Ele recompensa os bons e priva os maus. É, portanto, a divindade de uma categoria etária. Só não é uma divindade verdadeira porque os adultos não acreditam nele, embora incentivem as crianças a acreditarem. Tal divindade liga-se aos ritos de iniciação de uma sociedade, pois divide as crianças dos adultos e adolescentes. Estas divisões são comuns em todas as sociedades. É raro encontrar uma sociedade em que as crianças (e também muitas vezes as mulheres) não são “excluídas” da sociedade dos homens devido à ignorância de certas crenças e mistérios alimentada pelos últimos, e que estes revelam num momento oportuno, sacramentando assim a passagem entre dois mundos – aponta o pesquisador (p. 24). Os ritos de iniciação têm a função de ajudar os mais velhos a manter a ordem e a obediência entre os mais novos. O Papai Noel, por exemplo, é evocado para que as crianças se comportem e para disciplinar suas reivindicações de presentes, uma espécie de figura de negociação entre as gerações.

Partindo destas considerações, o autor faz uma analogia entre Papai Noel e as katchinas; personagens de uma determinada sociedade indígena, situada no sudoeste dos EUA, que encarnam deuses e ancestrais. Trata-se na realidade de índios adultos usando vestes e máscaras que aparecem na aldeia para dançar e punir ou recompensar as crianças sem que elas saibam quem está por baixo da roupa. Segundo o mito indígena, as katchinas são crianças que morreram afogadas, mas que voltavam da além-vida para assombrar a aldeia, raptando algumas crianças. Os pueblos teriam então feito o acordo de representarem estas entidades numa época do ano para ficarem livres dos assombros. Para Lévi-Strauss, a questão da ordem é secundária, pois em primeiro lugar a função das katchinas é provar a morte e dar o testemunho da vida após a morte. Daí explica-se a repartição da sociedade em duas, entre iniciados (adultos) e não-iniciados (crianças). As crianças são excluídas porque elas são as próprias katchinas. Seu lugar é outro: não com as máscaras e os vivos, mas com os deuses e os mortos. Isto é, com as divindades que são os mortos. E os mortos são as crianças. O mesmo se aplica a sociologia iniciática que envolve Papai Noel. Para além da oposição entre adultos (que sabem) e crianças (que ignoram), há uma oposição simbólica mais profunda, entre vivos e mortos.

A análise sincrônica da antropologia é confirmada também pela análise diacrônica de folcloristas e historiadores da religião. Para estes, a origem de Papai Noel se encontra no Abade de Liesse (Abbas Stultorum), ou Lord of Misrule, personagens que são reis do Natal (reis de um período, temporários), herdeiros do rei das Saturnais da época romana. As Saturnais eram festas dos mortos por violência ou sem sepultura. Para o estudo diacrônico, Papai Noel moderno é a fusão sincrética de algumas figuras: Abade de Liesse, bispo-menino eleito sob a invocação de São Nicolau, e o próprio São Nicolau, cuja festa liga-se a crença relacionada a meias, sapatos e chaminés. Abade de Liesse reinava interinamente dia 25 de dezembro; São Nicolau tinha a festa dia 6 de dezembro; os bispos-meninos em 28 de dezembro; e o Jul escandinavo era comemorado também em dezembro. Supõe-se que a Igreja marcou a data do natal para dia 25 para substituir as festas pagãs do dia 17 que, no fim do Império Romano, ia até dia 24. Nota-se, portanto, não uma sobrevivência totalmente contínua, mas uma fusão e transmutação de elementos festivos de Natal.

As festas Saturnais e o Natal da Idade Média podem explicar o sentido profundo da estrutura em tais instituições recorrentes que se mostra na superfície do Natal moderno. É perceptível que as festas de dezembro da Antiguidade à Idade Média possuem características semelhantes: decoração das casas com folhagens verdes; presentes são trocados ou dados às crianças; alegria e festejos; confraternização entre ricos e pobres, senhores e servos. As Saturnais romanas e o Natal medieval são reuniões e comunhões! Escravos e servos sentam-se a mesa farta e os senhores tornam-se seus servidores. Homens e mulheres vestem as roupas uns dos outros. Mas ao mesmo tempo a sociedade se reparte ao meio. Nessa divisão, a juventude fica autônoma e elege seu soberano. Em geral com o título aproximado de Senhor da Desrazão. Ao que esse título indica, a juventude age de maneira enlouquecida, cometendo abusos contra a outra parte da população, desde xingamentos a assassinatos. Segue a ideia de “colocar os demônios para fora”. Uma espécie de negociação com a escuridão para receber novamente a luz, que o filme The Purge (2013) traz uma versão pós-moderna e secularizada. Assim, o clima de solidariedade dá lugar ao antagonismo exacerbado, tanto nas Saturnais como no Natal medieval. O Abade de Liesse é quem realiza a mediação entre estes dois aspectos, contendo os excessos e estabelecendo os limites. Mas o que esta figura tem a ver com seu descendente remoto, o velho Noel?

Lévi-Strauss na Amazônia, em 1936

Ora, do ponto de vista histórico, Papai Noel resulta do deslocamento da festa de São Nicolau (6 de dezembro), assimilada a comemoração de Natal, três semanas depois. “Um personagem real se tornou um personagem mítico; uma emanação da juventude, simbolizando seu antagonismo em relação aos adultos, fez-se símbolo da idade madura, tradução da disposição benévola em relação à mocidade; o apóstolo das más condutas é incumbido de sancionar as boas condutas” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 36-37). Em nossa sociedade contemporânea, a juventude perdeu lugar como categoria etária específica, logo a “desrazão” do Natal perdeu seu apoio como havia no medievo e nas Saturnais. É interessante notar que as crianças na Idade Média não esperavam seus presentes, mas iam de casa em casa, disfarçadas, cantando e recebendo doces e frutas. Seus disfarces as transformavam em espíritos e fantasmas, suas músicas evocavam a morte para fazerem valer seus pedidos. As coletas começavam em geral três semanas antes do Natal. Estes rituais também ocorriam em outras épocas do ano, mas especialmente no outono. Assim, o primeiro período peditório, o Hallow-Even, é na véspera do dia de todos os santos. Crianças vestidas de fantasmas e esqueletos perseguem os vivos (adultos). O avanço do outono até o solstício marca o resgate da luz e da vida: “retorno dos mortos, suas ameaças e perseguições, o estabelecimento de um modus vivendi com os vivos na festa do intercâmbio de serviços e presentes, e, por fim, o triunfo da vida, quando no dia de Natal os mortos, cobertos de presentes, deixam os vivos em paz até o próximo outono” (p. 40-41).

Neste sentido, o antropólogo questiona: quem pode personificar os mortos numa sociedade de vivos senão todos os que não estão completamente integrados ao grupo, que participam da alteridade dual entre vivos e mortos? Não à toa, estrangeiros, escravos, crianças e mendigos são os principais beneficiários da festa. “Não surpreende, pois, que o Natal e o Ano Novo (seu duplo) sejam festas de presentes: a festa dos mortos é, na essência, a festa dos outros, visto que o fato de ser outro é a primeira imagem aproximada que podemos construir a respeito da morte” (p. 43). Finalmente, o autor diz que agora é possível responder as principais indagações do ensaio que ficaram implícitas. Por que a figura de Papai Noel ganha espaço e por que a Igreja está preocupada?

Papai Noel é herdeiro e ao mesmo tempo antítese do Senhor da Desrazão. Essa transformação indica uma melhora em nossa relação com a morte, porque agora podemos ficar quites com ela sem precisar permitir temporariamente a subversão da ordem e das leis. Essa relação é regida atualmente por uma entidade benevolente, podemos ser generosos, oferecer presentes e brinquedos, símbolos. A Igreja cristã está certa em se preocupar com o paganismo de Papai Noel. O fortalecimento deste é o enfraquecimento da relação entre mortos e vivos. Diametralmente, esse enfraquecimento mostra o medo da morte, como representação em termos de empobrecimento, rigidez e privação. O que os adultos demonstram ao prestigiarem Papai Noel é o desejo de acreditar numa generosidade irrestrita, gentileza desinteressada, suspensão do receio, da amargura e da inveja. Claro, eles não podem compartilhar plenamente desta ilusão, mas alimentada nos outros (nas crianças), ela fornece aquecimento a alma (p. 45).

Dizer às crianças que o presente vem do além é uma saída para ofertá-los ao além, aos mortos. Mas, como mostra James Frazer, há uma diferença significativa entre cristãos e pagãos em relação aos mortos. Os últimos rogam aos mortos, enquanto os primeiros rogam pelos mortos. Todavia, cabe perguntar se o homem moderno não pode exigir o direito de ser pagão – como ficou entrevisto na reação dos anticlericalistas ao “racionalismo” da Igreja. Frazer mostra também que algo se perdeu entre as Saturnais e o Natal da Idade Média. É que o rei das Saturnais remonta a um protótipo antigo que depois dos excessos da “desrazão” era sacrificado no altar de Deus. Ironicamente, graças ao clero da cidade de Dijon e a fogueira moderna de Papai Noel, o herói foi totalmente reconstituído depois de um hiato de milênios. 

Referências:

DOSSE, François. História do estruturalismo, vol. 1: o campo do signo, 1945-1966. São Paulo: Ensaio; Campinas, SP: Ed. Da Unicamp, 1993.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O suplício do Papai Noel. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

THE PURGE.* Diretor: James DeMonaco. Produtor: Michael Bay. Universal Pictures. EUA, cor, 2013, 85min.

*Em português-brasileiro o filme recebeu o título de “Uma Noite de Crime”, creio que “O Expurgo” traduziria mais adequadamente a ideia da trama.

Adam Kuper - Cultura, a visão dos antropólogos


KUPER, Adam. 2002. Cultura, a visão dos antropólogos. Bauru, SP: EDUSC.

Roberta Bivar C. Campos 

PPGA /UFPE

A EDUSC mais uma vez oferece aos leitores de língua portuguesa uma publicação relativamente recente no cenário internacional: Culture: the anthropologist's account. Em português, o mais recente livro de Adam Kuper publicado no Brasil tem como título Cultura, a visão dos antropólogos. Adam Kuper é nosso conhecido não tanto por seus trabalhos etnográficos baseados em pesquisa de campo na África e na Jamaica, mas por conta de seus trabalhos sobre a antropologia britânica, mais especificamente, pelo seu livro Antropólogos e antropologia (originalmente publicado em 1973). Tal qual este último, Cultura, a visão dos antropólogos é uma história crítica da produção antropológica, e não dispensa ironias. Em verdade, trata-se de um desdobramento do último capítulo do primeiro livro onde já estão colocadas suas idéias sobre o desenvolvimento recente da antropologia a partir de 1970, quando os antropólogos, em face do processo de descolonização, se viram forçados a repensar a natureza de seu objeto de estudo. Se o primeiro livro é obra de sua juventude e tem por objeto de análise a antropologia britânica, em especial os antropólogos de orientação estrutural e cultural-funcionalista, o segundo, obra da maturidade do autor, trata da antropologia americana, em especial de David Schneider, Clifford Geertz e Marshall Sahlins, herdeiros intelectuais, segundo Kuper, de Talcott Parsons.


O livro está organizado em torno do desenvolvimento e usos da idéia de cultura, particularmente na antropologia norte-americana. A primeira parte contém dois bons capítulos dedicados à genealogia do conceito de cultura. No primeiro, passamos pelos intelectuais franceses, alemães e ingleses, como é de praxe em toda genealogia do conceito. O segundo, mais original, fornece-nos o desdobramento mais recente do conceito via a tradição parsoniana que influenciou vários antropólogos. A segunda parte, dedicada ao que Kuper chama de experimentos, elege Clifford Geertz, David Schneider e Marshall Sahlins como os herdeiros de Talcott Parsons, e a cada um desses teóricos dedica um capítulo (capítulos 3, 4 e 5) onde descreve suas carreiras, idéias e contribuições no contexto intelectual e institucional em que trabalharam. Essa parte oferece ao leitor um certo desconforto. Ao contrário dos capítulos dedicados a Geertz e Sahlins, em que Kuper nos oferece uma análise crítica séria e por vezes até minuciosa da trajetória intelectual desses teóricos, aquele consagrado a David Schneider parece ter sido escrito às pressas, para dizer o mínimo. Seu conteúdo é desrespeitoso à pessoa de David Schneider. Kuper decepciona e infelizmente não nos oferece uma análise crítica das idéias de Schneider, mas uma biografia com comentários psicanalíticos de profundidade questionável, fazendo sugestões sobre a personalidade de Schneider que não vejo como possam contribuir para a compreensão do impacto de suas idéias nos estudos sobre parentesco, que Kuper faz questão de omitir.

A introdução e os capítulos 6 e 7 estão organicamente ligados e situam Cultura, a visão dos antropólogos em um debate maior sobre os limites e impasses que a teoria antropológica enfrenta na atualidade, e que tem como foco a crítica ao conceito de "cultura". Tal crítica tem como alvo as vertentes teóricas que privilegiam a função cognitiva, mental e representacional da cultura. Kuper, em particular, parece mais preocupado com a banalização e vulgarização do conceito, e culpa em grande medida os estudos culturais e o multiculturalismo por tal efeito perverso. A cultura por estar em toda parte teria perdido seu potencial analítico e explicativo. Ao mesmo tempo, o próprio potencial liberal que se pensa existir no conceito de cultura, em especial se comparado ao conceito de raça, não é mais garantido, podendo o conceito, inclusive, servir para oprimir e subjugar. A cultura tal qual a raça, por mecanismos distintos, fixa a diferença. Kuper, na verdade, é fiel à tradição britânica, privilegiando as relações sociais, o jogo de interesses econômicos e políticos. O forte sociologismo de Adam Kuper o faz "jogar fora a criança (cultura) junto com a água do banho". Ao final da leitura não temos uma simples genealogia do conceito, com suas aventuras acadêmicas e transformações, mas um ataque consciente ao movimento pós-moderno em favor de uma antropologia sociológica, comparativa.

Biografia de Adam Kuper


Adam Kuper é um antropólogo nascido em 1941, ligado à Escola de Antropologia Social. Em seus trabalhos, costuma analisar a cultura em seus usos e seus significados.

Nascido e criado na África do Sul, ele ingressou na Universidade de Witwatersrand em Johannesburg. Seu doutorado, na Universidade de Cambridge, foi baseado no campo de pesquisa no deserto Kalahari, que hoje é conhecido como Botswana. Depois da graduação, ele retornou à África, fazendo diversos trabalhos de campo em Botswana e Uganda e ensinando por três anos na Universidade Makerere, em Kampala. De 1970 a 1976, lecionou na Universidade College London. De 1976 a 1985, ele foi professor de antropologia africana na Universidade Leiden, na Holanda. De 1985 a 2008, foi professor na Universidade Brunel, onde era chefe do Departamento de Ciências Humanas e, mais tarde, chefe do Departamento de Antropologia.

Recebeu o prêmio de pesquisa "Leverhulme Major Research Grant" por dois anos (2003 e 2005), o qual o permitiu gastar mais de seu tempo com pesquisas.

Adam Kuper – Antropólogos e Antropologia


à Malinowski

Pai da Antropologia Social Birtânica? Houve uma revolução funcionalista, cujo líder foi Malinowski, mas que não estabeleceu uma teoria funcionalista como este propusera. Funcionalismo rejeitando o difusionismo e a teoria evolucionista: forte influência durkheiminiana.

Necessidade de se começar a colher os fatos: (neo)colonialismo poderia acabar com eles – ressurgimento do empirismo britânico. Análise sincrônica: enfoque funcionalista não desaloja as teorias evolucionistas e difusionistas, mas lhes acrescenta algo. Mas ele era cada vez mais indiferente com a questão das origens.

Importância a questão do método (ver resumo da introdução dos Argonautas...): captar a mentalidade nativa – diferenciar o que as pessoas fazem do que elas dizem estar fazendo (costumes organizam-se em um todo coeso em torno de atividades, mas os indivíduos, sempre que podem, os manipulam em seu benefício).

Mensagem do seu trabalho com dimensão política: se as culturas eram mecanismo delicadamente afinados para a satisfação das necessidades dos homens, então cada uma tinha seu valor è abordagem relativista.

Cada monografia interessava-se por um foco institucional: nunca descreveu a cultura trombiandesa como um todo pois lhe faltava a noção de um sistema, descrevia-a parceladamente.

Tres aspectos centrais em suas monografias: a) aspectos da cultura não podem ser estudados isoladamente (necessidade do contexto de seu uso); b) as pessoas sempre dizem uma coisa e fazem outra; c) racionalidade do selvagem: tal como a nossa, manipula as possibilidade da maneira que lhe for mais vantajosa.

Cultura como todo integrado pois são unidades funcionais: todo e qualquer costume existe para preencher um propósito (significado vivo e coerente do costume para com os membros da sociedade) – resultados dos meios que os homens usam para satisfazer suas necessidades. Concepção própria de homem: realista, prático, razoável, falho de imaginação. Crenças e ritos aparentemente irracionais fazem sentido quando se aprecia seu uso.

A cultura existe para satisfazer necessidades, as quais decorrem da própria aquisição da cultura: mostre-me um complexo de costumes e decidirei intuitivamente a que necessidade esse complexo serve.

Acusado de ser indiferente com o desenvolvimento histórico: ele não estava preocupado com problemas de história.

Primeiro a mostrar o caminho em que o princípio de reciprocidade poderia servir para vincular o individuo, em seus próprios interesses, a comunidade.

A Radcliffe-Brown (RB):

Sociologia de Durkheim é sua maior influencia, embora tenha permanecido evolucionista na tradição de Spencer. Sociedades como organismos, devem ser estudadas pelos métodos das Ciências Naturais, evoluindo no sentido de diversidade e complexidade.

Após a IGM, coube a Mauss e RB perpetuar a obra de Durkheim, tendo RB trabalhado com o estudo das relações sociais.

Estrutura social: sistemas de relações de encadeamento entre indivíduos que ocupam papéis sociais: soma total das relações sociais de todos indivíduos num dado espaço de tempo. Não se trata de uma abstração, mas de realidade (criticado por essa afirmação). Forma estrutural explicada em usos, normas sociais (com as características dos fatos sociais de Durkheim). Uma vez extraída a forma social de uma certa quantidade de sociedades, passa-se a classificação e comparação (base do procedimento científico). Objetivo final: generalizações: leis sociais (ou seja, características comuns de todas as sociedades humanas). Estruturas sociais em fluxo, formas sociais eram comparativamente estáveis. Estabilidade depende da integração de suas partes e do desempenho por essas partes de determinadas tarefas que são necessárias à manutenção da forma.

Necessidade básica de todas as sociedades: ajustamento mutuo dos interesses dos membros da sociedade, padronização de comportamento: cultura. Só podemos estudar a cultura como uma característica do sistema social. Se estudamos a cultura estamos sempre estudando os atos de comportamento de um conjunto específico de pessoas que estão vinculadas entre si numa estrutura social.

Dinâmica de como as sociedades mudam de tipo eram logicamente seculdários, seriam deduzidos pelas leis da continuidade social. Mostrar como um uso social preenche uma dessas funções básicas, das quais depende a manutenção de formas sociais estáveis è Ele não era somente um funcionalista, mas também um estruturalista.

Sua especialidade era o sistema de parentesco: conjunto de usos sociais interligados que se baseavam no reconhecimento de certas relações biológicas para fins sociais. Eixo central era a família. Sua abordagem difere da do método clássico, recusando explicações especulativas e reducionistas. Irmão da Mãe: hipótese extensionista.

Sua preocupação final sempre fora a sociologia comparada

à As décadas de 1930 e 194 – Da função à estrutura (dos estudos malinowskianos aos estudos radcliffe-brownianos).

PErídodo funcionalista na década de 30 (MALINOWSKI) e período de uma onda de predominância de estudos neo-radcliffe-brownianos. Em parte, deve-se a mudança do trabalho de campo da Oceania para a África (estudo de sociedades em grande escala). Permanecia, porém, a ênfase malinowskiana pelo trabalho de campo por observação participante, como um ideal a ser seguido.

Problema básico da antropologia funcionalista (mais precisamente a antropologia malinowskiana) era do recorte: se está tudo relacionado, onde pára a descrição? Faltava uma teoria que explicasse o que era relevante e o que era periférico para a resolução de um determinado problema.

1ª Resposta: Bateson em Naven: questão da seleção e abstração – se fosse possível descrever a cultura pormenorizadamente nada pareceria diferente, estranho, mas seria tão natural como nossa própria cultura. Mas ele mesmo critica sua escassez de fatos, que nem conseguiria demonstrar sua teoria (dá importância às relações interpessoais: cismogênese)

2ª Resposta: Evans-Pritchard – Bruxaria, Oráculo e Magia entre os Azande: interesse pela cultura como um todo. Problema básico era de como podem seres racionais acreditarem em tais coisas. Escrito como que dirigido a um cético que Evans-Pritchar (EP) quer convencer: crenças como decorrência lógica, consistência intelectual dos zande.

Tom combativo à Malinowski: seleção de algumas de suas relações: enfoque institucional (sobre a magia) foi tipicamente malonowskiano, mas o método de abstração não o foi (seleção de relações a serem feitas).

Considera dois métodos de abstração:

a) Tratamento de apenas uma parte da vida social e de problemas particulares e limitados, tomando em consideração o resto a medida que for relevante para esses problemas (Malinowski e Mead)

b) Método estrutural: análise estrutural através da integração de abstrações provenientes da vida social (característica de EP nos Zande): estruturam uma análise convincente de uma vasta coleção de dados. Bruxaria como causa socialmente relevante do infortúnio.

Preocupação com a estrutura social e interesse por sistemas políticos e de parentesco. Aquilo que os autores haviam identificado na Oceania era apenas uma pequena parte dos mecanismos governamentais das sociedades africanas (amplitude política: urgência em resolve-los devido a necessidade das autoridades coloniais).

Ambição comparativa. Maior problema fora criado por sociedades que careciam de instituições políticas centralizadas: Os nuer.

Esses livros também apresentavam um afastamento da posição de RB: estrutura social passou a conotar a estrutura de relações entre grupos

Ver resumo sobre os Nuer (noção de equilíbrio: muito criticada por Leach)

EP adotou o ponto de vista de Durkheim e RB sobre o caráter das sociedades segmentarias, procurando a ordem no domínio dos valores compartilhados (a consciência coletiva). OS Nuer: exercício de abstração da estrutura social segundo um nível durkheiminiano de consciente coletivo: interesse em valores, argumentando que relações políticas são melhor enunciadas como tendências para ajustar-se a certos valores em certas situações, e o valor é determinado pelas relações estruturais das pessoas que compõem a situação.

Uso de uma noção amis refinada de estrutura: aceita a lógica de Bateson, transcendendo o realismo simplista de RB: Trata-se de uma abstração da realidade concreta, para escapar ao enfoque das relações interpessoais.

à Leach e Gluckman: para além da ortodoxia

Gluckman e Leach: rompem com a tradição (malinowski, RB e Evans-Pritchard), tanto no que diz respeito a uma estrutura impositiva como ao trabalhar com a relação entre povos, e não somente uma tribo isolada.

Problemática de considerar os dois em conjunto: Leach critica a noção de equilíbrio de Gluckman. Leach se considera um funcionalista, discípulo de Malinowski, mas consciente das limitações da teoria de seu mestre.

Leach e Gluckman, duas figuras intermediárias entre a geração pioneira e a do pós-guerra, interessavam-se em dilatar o âmbito e aumentar a penetração das teorias que tinham sido estabelecidas na década de 1930. Em uma frase: "o dinamismo central dos sistemas sociais é fornecido pela atividade política, por homens que competem entre eles para aumentar seus recursos e encarecer seu status, dentro do quadro de referência criado por regras requentemente ambíguas" (KUPER, 1978, p. 171)

Gluckman: Oposição segmentária na Zululândia pré-colonial produzia coerência e equilíbrio: conflitos eram positivamente funcionais, como a rivalidade Nuer. Vai além, ao contrastar este sistema estável com o que encontra em campo: oposição entre dois grupos não é equilibrada (um é superior: os europeus).

Análise de uma situação social na zululândia moderna vai além: Sociedade política plural formada por dominação colonizadora deve fornecer o quadro de referência para a compreensão dos sistemas "tribais" locais. Descrição do evento da ponte: diferentes grupos seriam obrigados a interatuar em esferas de interesse comum: "comportam-se da maneira como se comportam pois a ponte é o centro de seus interesses, associando-os em uma celebração comum" (KUPER apud GLUCKMAN, idem, p. 173).

Situação não era estável: resolução de conflitos necessitava de mudanças estruturais. Esse tipo de modelo contrasta com as sociedades Zulus pré-coloniais, caracterizada por sua reativa estabilidade. Equilíbrio social resultaria do equilíbrio de oposições no num processo dialético. Há conflito também no ritual, que ao expressa-lo purifica a sociedade.

Se inspira nos estruturalistas britânicos RB e EP: trata-se de um dos desenvolvimentos possíveis das teorias da ortodoxia britânica. Ponto mais fraco da teoria de Gluckman: idéia de sistemas sociais repetitivos em oposição aos variáveis . Levou-o a absurdos.

Sua análise de apenas uma situação social na Zululândia indica seu descontentamento com os modos convencionais de apresentação do material etnográfico ilustrativo. Inova ao trabalhar com o conflito e ao advogar pelo trabalho da situação política total.

Obs: Turner: Fissão na aldeia. Interesses entre homens membros de uma matrilinhagem conflitando com irmãos, maridos e cunhados. Luta de parentes para conseguir mulheres e seus filhos. Única unidade era a dos filhos de uma mãe (alvo do pai e do irmão da mãe). "Drama social" para apresentar o modo como os conflitos se resolviam: "conflitos manifestos punha a descoberto as tensões subjacentes do sistema social; portanto, dramatizavam as tensões inerentes à própria estrutura" (idem, p. 180). Turner reconhecia a influência de Gluckman. Foco no indivíduo, em seus papéis prescritos.

Leach: Sistema Político na Alta Birmânia – inutilidade de utilizar a definição de tribo para agrupar KAchin e Shan: eles devem ser vistos como compreendendo um único sistema social., mas não em equilíbrio. O equilíbrio ignora as inconstâncias, que podem ser justamente a chave para se compreender os processos de mudança social.

Ritual: expressa e reafirma um ideal do sistema de relações sociais aprovadas, e não tanto no sentido normativo. Análise estrutural e rituais das pessoas são abstrações idealizadas, tentativas de impor um "como se", ordem fictícia mas compreensível imposta ao fluxo da vida social. Busca de poder: série de opções que podem mudar a estrutura da sociedade.

Interesse por como os Kachin tornam-se Shan e vice versa: um tipo de sistema a transformar-se no outro. Dinâmica da mudança é fornecida por indivíduos disputando poder.

O modelo do antropólogo também está necessariamente muito distante dos fatos empíricos. É um modelo de equilíbrio "como se", diferindo unicamente do gênero de modelo usado pela próprias pessoas na precisão de suas categorias. "Para entender o fluxo real de relações sociais, o antropólogo deve considerar as anomalias e contradições, e observar como indivíduos ambiciosos estão manipulando os recursos políticos" (idem, p. 189).