terça-feira, 31 de maio de 2016

Antropologia, a ciência da Alteridade – Introdução à Antropologia Jurídica


A Antropologia surgiu no século XIX, à luz da teoria do Evolucionismo Cultural e tinha como objeto as sociedades “primitivas” – exteriores às áreas de civilização européias ou norte-americanas. Sua condição essencial era o distanciamento, sobretudo geográfico, entre observador e observado, sujeito e objeto. Limitavam-se ao estudo das sociedades de dimensões restritas, isoladas, com métodos tecnológicos pouco aprimorados e detentores de uma menor
especialização das funções sociais.

A ciência do homem, ditava que, todos os povos inferiores e bárbaros, estavam “condenados” à “evoluir” para a Civilização Ocidental. Com este afunilamento do objeto de estudo, surgiu a questão: com o fim do selvagem, ou seja, a socialização deste “Outro” com o mundo ocidental, ocasionando seu desenvolvimento tecnológico e retirando-o do estado de barbárie, significaria o fim da Antropologia?
Na época, duas soluções foram apontadas. Aceitar a “morte” e voltar para o âmbito das outras ciências sociais ou afirmar a especificidade de sua prática e ampliar o seu enfoque para o estudo do homem inteiro; estudo do homem em todas as sociedades, em todos os estados e em todas as épocas.

As dificuldades da Antropologia são diversas e insolúveis. Inicia-se, desde o nível das palavras. Qual o termo mais adequado: etnologia ou antropologia? A etnologia ressalta a pluralidade das etnias. A Antropologia, reforça a unidade do gênero humano. Quanto ao grau de cientificidade, pertence aos sistemas Naturais ou simbólicos? Qual a função da Antropologia? Influir diretamente nos costumes dos seus objetos (Antropologia Revolucionária) ou, deve-se ater, a mera observação (Antropologia Pura)?

A abordagem antropológica é, hoje, o método integrativo, leva em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade. Sua ciência, devido a pluralidade dos dados colhidos, subdividiu-se e diferenciou-se em Antropologia Biológica, Pré-Histórica, Lingüística, Psicológica, Social e Cultural. O campo biológico se concentra na análise das variações dos caracteres biológicos. A relação intersubjetiva do patrimônio genético com o meio (Genética das Populações). O Pré-Histórico remonta as sociedades desaparecidas e reconstroem suas técnicas, organizações, produções culturais e artísticas. A Lingüística se atém ao estudo da Linguagem e suas respectivas categorias psicoafetivas e psicocognitivas (etnolinguística). A Psicológica refere-se ao funcionamento do psiquismo humano. A Social e Cultural (ou Etnológica) é a mais ampla e difundida. Trata-se de absolutamente tudo que constitui uma sociedade; seus modos de produção econômica, técnicas, organização política e jurídica, sistemas de parentesco, seus sistemas simbólicos, tecnologia, etc.

Cultura é a capacidade que os seres humanos têm de dar significados as suas ações e ao mundo que os rodeia; seus códigos simbólicos, dinâmica e coerência interna. Trata-se, portanto, da capacidade que os seres humanos têm de aprender. A Cultura é um processo contínuo de reinvenção de tradições e significados e ao antropólogo, cabe então a interpretação dos diferentes códigos simbólicos que constituem as diversas culturas.

A compreensão de uma humanidade plural perpassa pela idéia das diversidades históricas e geográficas e se reafirma na experiência da alteridade. O conceito de alteridade é fundamental, norteador da Antropologia, pois dita que as características e comportamentos “inatos” são, na verdade, fruto das escolhas culturais de um povo. A diversidade cultural apresenta-se, portanto, como elemento constitutivo da própria sociedade; um elemento diferenciador.

A abordagem antropológica provoca, assim, uma verdadeira revolução epistemológica, que começa por uma revolução do olhar. Ela implica um descentramento radical, uma ruptura com a idéia de que existe um "centro do mundo" e, correlativamente, uma ampliação do saber e uma ampliação de si mesmo. (LAPLANTINE, 2000, p. 22)
A alteridade, entretanto, pode ser utilizada como argumento para a prática de violência de várias ordens. O Etnocentrismo caracteriza-se pela reação à alteridade, o estranhamento diante dos costumes de outros povos e avaliação das formas de vida distintas a partir de nossos padrões culturais. Quando o etnocentrismo degenera, deixa de ser apenas o zelo de um determinado grupo com relação a suas práticas em detrimento das práticas alheias, surgem as manifestações de alterofobia, de “ódio ao outro”, de ódio ao diferente de si.

Torna-se, então, pretexto para eliminação física (Genocídio), Moral ou Cultural (Etnocídio). O Genocídio são assassinatos deliberados de pessoas por motivações étnicas, nacionais, raciais, religiosas. E o Etnocídio, é diferente do genocídio, porque visa não somente a destruição física, a matança, e sim o desaparecimento por inteiro dos traços culturais (língua, costumes, hábitos, tecnologia, mitos).

O genocídio corresponde à eliminação física de um determinado grupo ou sociedade. Sua definição jurídica data de 1946, quando o holocausto, o extermínio sistemático dos judeus pelos alemães nazistas, foi criminalizado e julgado no processo de Nuremberg. (...) Na atualidade, o rechaço à diferença cultural tem provocado situações não menos preocupantes, como as manifestações xénofobas ou diferentes fundamentalismos religiosos e culturais do mundo contemporâneo. (RIBEIRO, 1995, p. 430)

REFERÊNCIAS

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo, Ed. Brasiliense. 2000.
THOMAZ, O.R. (1995) "A Antropologia e o Mundo Contemporâneo: Cultura e Diversidade" in A.L. da Silva & Grupioni, L.D.B. (orgs) A Temática Indígena na Escola. Brasília: MEC/MARI/UNESCO.

Taddei - SOBRE A ESCRITA ETNOGRÁFICA


Gustavo Ribeiro - ANTROPOLOGIAS MUNDIAIS



segunda-feira, 2 de maio de 2016

Paulo Granjo - Determinação e caos segundo a adivinhação Moçambicana



Peter Bürger - Sobre o Problema da Autonomia da Arte na Sociedade Burguesa (Resumo)



Anthony Giddens - Para Além Da Esquerda E Da Direita: O Futuro Da Política Radical


O autor traça um perfil do que ele chama de 'conservadorismo filosófico' e examina cuidadosamente temas como o da globalização, socialismo, neoliberalismo, democracia, 'welfare state', procurando analisá-los através da categoria de reflexividade que, para ele, explica a consciência e as ações de nossos dias. Giddens oferece uma vigorosa interpretação do fundamentalismo, da persistência da divisão de gêneros e das possibilidades de uma teoria normativa da violência.


José Agualusa - A Rainha Ginga


Este romance histórico narra a incrível e verdadeira história de dona Ana de Souza (1583-1663). Senhora de um reino poderoso nos vastos sertões da costa ocidental da África, dizimado e reconstruído vezes seguidas, ela exerceu seu poder com inteligência e originalidade. Astuta nas negociações políticas, a Rainha Ginga estabeleceu alianças diplomáticas com os holandeses, ao mesmo tempo em que comandava os seus exércitos contra outros reis africanos, e tropas luso-brasileiras. Ardilosa, vaidosa, adotou uma coleção de esposas (na realidade homens, vestidos como mulheres) e se casou várias vezes com chefes militares que desejava como aliados políticos. O renomado escritor José Eduardo Agualusa recupera a trajetória desta poderosa rainha, compondo uma história de amor, sexo e poder.

domingo, 1 de maio de 2016

LEITE Ilka Boaventura - Antropologia da Viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX


Flávio L. Abreu da Silveira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. 272 p.

Se o estrangeiro como coloca Simmel é um personagem positivo, se a sua experiência desencadeia um conjunto complexo de relações no local onde se insere enquanto uma figura que interage com o meio social, como alguém que penetra em um ambiente marcado pela diferença daquele de origem e busca desvendá-lo, então, considerar o seu olhar como uma fonte riquíssima de representações acerca do Outro é uma proposta instigante e reveladora de questões fundamentais. Essa parece ter sido a principal tarefa da antropóloga Ilka Boaventura Leite no livro Antropologia da Viagem - Escravos e Libertos em Minas Gerais no Século XIX.

A autora aborda a questão considerando os relatos de viagem como textos pré-etnográficos, ou seja, já estão ali, sob diferentes formas, os elementos que são os precursores da narrativa etnográfica: o estranhamento não tem um caráter metodológico e a imersão no universo cultural do Outro não apresenta uma nítida reflexão de si, enquanto uma experiência de abertura para o diálogo com o Outro, pelo contrário, no caso dos viajantes, o estranhamento e a reflexão são frutos da observação de diferenças que demarcam fronteiras que demonstram maneiras de perceber-se de acordo com padrões próprios da época, ou seja, como oriundos do continente europeu ou norte-americano, letrados, étnicamente diversos e, na maioria das vezes, interessados pelas riquezas minerais, faunísticas e florísticas do Novo Mundo.

A questão dessa forma, implica em considerar os relatos de viagem como a expressão de personagens cujo intuito variava de acordo com a sua formação e os critérios pelos quais suas experiências no solo brasileiro se pautavam. Sendo assim, cada viajante considerado pela autora tinha um interesse em particular: botânico, zoológico, mineralógico, religioso, político, econômico e de lazer.

No entanto, tais questões não impedem que esses personagens realizem um tipo de escrita que os coloca dentro de um gênero específico, de um tipo de narrativa que mescla literatura, diários científicos e de viagens, bem como, de relatos onde certas representações sociais aparecem como maneiras de narrar a experiência de relação com o Outro que é considerado mediante um olhar que o exoticiza e o vincula a um cenário de abundância natural.

O que fica claro é que, mediante a análise criteriosa dos seus relatos surge uma série de possibilidades interpretativas acerca do material que configura o corpo de informações que cada um deles abarca, pois permite compreender a forma como determinados processos sócio-históricos ocorreram numa dada região, no caso, Minas Gerais. Além disso, certamente, nos auxiliam a reconhecer e compreender através de seus relatos de viagem aqueles elementos formadores da cultura brasileira.

Portanto, uma antropologia da viagem pode revelar como o desprendimento, como o abandono do lugar de origem por parte desses personagens desencadeia um encontro com a diversidade, de maneira a permitir que a partir da relação entre proximidade e distância se construa um tipo muito específico de interação na qual as representações acerca do Outro sejam possíveis e apareçam como elementos importantes na construção das narrativas que constituem os seus relatos e diários de viagem, percebidos como resultado de um olhar que decifra uma realidade em dado contexto onde a interação ocorre. Assim, no livro em questão, os viajantes são considerados por uma perspectiva que os concebe como "reinventores de realidades".

O livro da antropóloga Ilka Boaventura Leite, portanto, é uma referência importante para pensarmos alguns aspectos que o colonialismo tomou no Brasil, dado o grande número de informações que a obra traz consigo, acerca dos discursos que forjaram uma imagem do negro no Novo Mundo e que podem ser interpretados como formas de dominação, pois o texto da autora é construído com uma riqueza de detalhes que demonstram a forma com que os diferentes viajantes que passaram pelo estado de Minas Gerais no século XIX manifestaram as suas impressões sobre as condições de trabalho, os costumes e práticas culturais dos negros que ali viviam naquele período. As análises realizadas pela autora dentro desse universo amplo de informações vem acompanhada de uma reflexão em torno da noção de raça e as implicações da mesma nas representações em relação aos negros no Brasil.

Mas, acima de tudo, os relatos de viagem se mostram como elementos fundamentais para compreendermos como um imaginário em torno do exotismo ligado aos grupos étnicos que viviam em meio a uma natureza exuberante, fez com que os povos de países do Hemisfério Norte se reconhecessem enquanto diversos e assim, construíssem e reforçassem uma idéia de si em oposição àqueles de além mar.

Revista Horizontes Antropológicos

CLARKE Peter B. - New trends and developments in african religions (Resumo)


CLARKE, Peter B. (Ed.). New trends and developments in african religions. Westport, Connecticut: Greenwood Press, 1998. 309 p.

Ari Pedro OroI; Luiz Carlos dos Anjos
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

Diferentemente de outros livros sobre religiões africanas ou derivadas, este não versa sobre um país, uma região ou um continente. Contrariamente às visões que concebem aquelas religiões como sendo essencialmente étnicas, este livro enfatiza a sua atual e cada vez mais crescente internacionalização e universalização. Assim sendo, uma das teses principais do livro consiste na ênfase ao importante dinamismo das religiões africanas ou derivadas e suas relações com outras tradições religiosas e culturais, seja na África, no Caribe, nas Américas ou em partes da Europa.

Esse particular dinamismo contínuo das religiões africanas ou derivadas com outras tradições religiosas tem sido freqüentemente rotulado de sincretismo e este tema abre e atravessa todo o livro. Neste sentido, Sidney Greenfield mostra como as análises desse fenômeno são influenciadas pelas agendas sociais e políticas dominantes nas respectivas conjunturas; Peter Clarke analisa as controvérsias sobre o sincretismo na relação entre o Candomblé e o Catolicismo no Brasil; Mundicarmo Ferretti analisa a natureza complexa do sincretismo das entidades espirituais ameríndias na religião afro-brasileira do Norte do Brasil; Ineke van Wetering estuda o sincretismo no Winti cult entre a população crioula, sobretudo de origem surinamesa, na Holanda. Também os capítulos escritos por Vittorio Lanternari e Victor Wan-Tatah versam, em grande medida, sobre o sincretismo, o primeiro ao analisar as relações entre catolicismo e religião tradicional africana no fenômeno Milingo, um culto de cura, desenvolvido em Roma desde 1983, e o segundo ao analisar o tema da conversão sobretudo na Nazarene Church of Isaiah Shembe no sul da África.

O texto de Peter Clarke, bem como o de Roberto Motta sobre a eclesificação do Candomblé no Brasil, e o de William Van De Berg sobre o processo de institucionalização do movimento Rastafari em North Carolina, mostram outro aspecto associado às tendências atuais das religiões africanas: o seu crescente processo de institucionalização. Neste aspecto Stephen Grazier afirma que nem tudo sobre essas religiões pode ser entendido em termos de seu passado africano e nem podem ser adequadamente interpretadas se concebidas apenas como religiões de protesto. A complexidade dos temas acima referidos pode ser percebido no estudo de Roland Littlewood sobre Earth People de Trinidad, um movimento milenarista altamente puritano, fundamentado na bíblia, que incorpora dimensões africanas e elementos indígenas.

O livro ainda contempla outros eixos de análise, tais como: comunidade e construção de identidade, que constitui um dos temas centrais do capítulo desenvolvido por Valerie De Marinis sobre a importância da comunidade para marginalizados na Macumba, em Salvador da Bahia, bem como no estudo de Gerrie Ter Haar sobre africanos imigrantes e descendentes em Amsterdam. O texto de Tina Gudrun Jensen sobre a Umbanda no Brasil também versa sobre o mesmo tema mas sua originalidade está em focalizar a categoria de membro flutuante por oposição ao núcleo dos membros iniciados, sobre os quais versam a maioria dos estudos. O tema do simbolismo religioso no contexto do ambiente cultural total, em lugar de apenas se concentrar no próprio movimento religioso, é objeto de estudo de Charles Gullick sobre os Shakers of St. Vincent, no Caribe. A temática de gênero entra na discussão a partir do estudo de Obiagele Lake sobre o movimento Rastafari. Na opinião da autora, este movimento tem o potencial para simbolizar melhor do que qualquer outro a luta das mulheres africanas para a igualdade com os homens.

O artigo de Mike Taylor sobre a Nação do Islã apresenta dois modos básicos de se perceber este movimento: como um culto que se insere nas aspirações da comunidade afro-americana provendo-as de uma poderosa, embora fantástica mitologia; ou como um movimento orgulhoso de identificação dos negros americanos. Ainda nos Estados Unidos, Brian McGuire e Duncan Scrymgeour avaliam a contribuição de casas de Santeria à formação de comunidades de Latinos sistematicamente marginalizados, comparando com o papel desempenhado pelo Pentecostalismo, também em Los Angeles, e em outros lugares, inclusive a América do Sul.

Assim, o livro vai se desenvolvendo entre temas correlacionados e espaços díspares e nos apresenta a configuração atual e as principais tendências de uma religiosidade dinâmica, moderna, em franco processo de diferenciação e institucionalização. Por tudo isto, e muito mais, "New Trends and Developments..." constitui, sem dúvida, um dos mais importantes livros aparecidos nos últimos anos sobre as religiões africanas e religiões espalhadas pelo mundo cuja cosmologia, ideologia, rituais e ethos derivam de religiões africanas.

Revista Horizontes Antropológicos

DIEHL Astor Antônio - A cultura historiográfica nos anos 80: mudança estrutural na matriz historiográfica brasileira (Resumo)


DIEHL, Astor Antônio. A cultura historiográfica nos anos 80: mudança estrutural na matriz historiográfica brasileira, IV. Porto Alegre, Evagraf, 1993, 202p.

Luiz Ricardo Michoelsen Centurião
Professor de Antropologia
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Em recente publicação, o historiador Astor Antonio Diehl aborda as formas como têm sido conduzidas as discussões a respeito da cultura brasileira no que se refere à constatação do surgimento de uma profunda crise de orientação ligada à débacle marxista e weberiana, no horizonte da modernização e da razão positiva.
Conforme Diehl, a partir de época recente reria ocorrido um "vácuo" tanto nas orientações de reconstrução do, passado como nas de percepção do futuro. Não haveria, conforme o autor citado, condições teórico-metodológicas de enfoque das possibilidades reais da modernidade, e isto se constitui num dos temas centrais de seu trabalho.

No âmbito das expectativas sociais e culturais não haveria como sustentar e validar as sínteses gerais de experiências reconstruídas do passado. Este fato seria acompanhado pelo direcionamento do olhar historiográfico para as pessoas concretas e seu subjetivo horizonte de experiências. Teríamos então ao nível de ação dos historiadores, a substituição das orientações holísticas para uma fragmentação configurada no terreno da Micro-história, da Antropologia e da Pós-modernidade.

A crise das teorias historicistas, conforme o autor, teria gerado um retomo à história cultural, restringindo-se o espaço tradicional de uma história utilitária que pudesse justificar atos políticos e ideológicos enquanto situações estruturais.

No contexto específico do movimento dos Annales, abordado na obra em questão, faz o autor referência à busca de contatos, pela História, com outras ciências sociais e humanas, particularmente e Etnografia e a Antropologia. Esta tendência teria conduzido a uma "antropologização" da História, dando-se isto tanto pela alternativa dos estudos do cotidiano como também pela poderosa influência de Michel Foucault, embora esta "antropologização" já estivesse ocorrendo anteriormente pelo contato com o estruturalismo de Lévi-Strauss, mesmo que de forma ambígua.

Considera também o autor que na "Nova História" incrustada no grupo dos Annales, deu-se simultâneamente com a recusa a apelar a sistemas teóricos de sustentação, uma inclinação a negar a cientificidade da História, sendo remetida esta ao campo da narrativa associada a técnicas de quantificação valorizadas por si mesmas. Tal fato ocorreria incorporado a um processo de fragmentação da História através da criação de micro-sistemas, e isto se refletiria na produção histórica brasileira.

No panorama da historiografia nacional, o estudo das mentalidades teria garantido seu lugar desde os anos 1980, embora já anteriormente alguns trabalhos como Visão do Paraíso, de Sergio Buarque de Holanda, já tangenciassem esta problemática. Posteriormente, surgem nomes como Carlos Guilherme Mota, Anita Novinsky, Laura de Mello e Souza e outros. Por detrás destes autores teríamos, como fonte de inspiração historiográfica, Walter Benjamin e Michel Foucalt.
Quanto à aproximação da História com a Antropologia, tornar-se-ia importante considerar a concepção antropológica de relativismo que despreza, na ótica do novo historiador, qualquer idéia de monocausalismo ou sentido único. Isto ocorreria em detrimento das Histórias Políticas, Econômicas e Sociais, ou seja, as grandes sínteses.

Mas se a nova cultura historiográfica dos anos 80 no Brasil promove uma mudança na matriz do conhecimento histórico, esta mudança não pode ser desvinculada da formação específica desta área de estudos em nosso país, e daí surge a necessidade de fazer-se um balanço das diversas tendências.
Nesta questão, dever-se-ia incluir a consideração da conceptualidade das categorias de Modernização e Modernidade, atualmente questionadas intensamente.
Apesar disto, temos a comprovação no Brasil, até a década de 70, de uma perspectiva otimista tanto na orientação respeito ao passado como nas perspectivas em relação ao futuro. Isto ocorre previamente à emergência de crises e revisionismos que se dão pela década de 80 quando ocorre uma queda do otimismo e uma convulsão no pensamento historicista brasileiro. As tradições marxistas e weberiana teriam dado um atestado de fracasso frente aos problemas gerados pela modernização. A produção histórica teria se tomado indisciplinada frente ao conhecimento sobre o passado. As noções de progresso e tempo linear são detectadas por sua inoperância, no cerne da crise da razão histórica moderna.

Desta forma, estamos diante de uma época de impasses, de desintegração dos valores orientadores da concepção do pensamento histórico. A utilização daquilo que constitui o pós moderno não contribui, por seu lado, para gerar expectativas otimistas, uma vez que pouco ou nada traz de novo. Diante deste quadro, o que se vê é uma tentativa, por parte de certos historiadores nacionais de resgatar uma mitológica do passado, tentando a recuperação das fontes de brasilidade.

Resignação e fraqueza são os Termos empregados pelo autor para caracterizar a atual situação. A própria aproximação da História à Antropologia, com a utilização de conceitos específicos a esta disciplina, tais como "descrição densa" e outros, são vistos por Diehl sob uma ótica pessimista, uma vez que esta aproximação revelaria uma incapacidade da cultura histórica de enquadrar-se e disciplinar-se metodologicamente por si mesma.

Revista Horizontes Antropológicos

TODOROV Tzvetan - Nós e Os Outros: A Feflexão Francesa Sobre a Diversidade Humana (Resumo)


TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana,v.1.Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993,215 p.

José do Nascimento Junior
Bacharel em Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Este livro escrito por Todorov - búlgaro, pesquisador do Centre National de Ia Recherche Scientifique (CNRS) - apresenta uma reflexão do processo de construção histórica de conceitos, tais como: etnocentrismo, cientificismo, relativismo, raça e racialismo, à luz de autores franc,eses dos séculos XVII e XX que contribuíram para este pensar. Como propõe Todorov, autores como
Montaigne, Renan, Lévi-Strauss etc, permitem-nos pensar a relação entre Nós - um grupo social determinado - e os Outros - todos aqueles que não têm a mesma identidade que Nós.
Ao confrontare dialogar com esses autores e conceitos, Todorov está preocupado em demonstrar como, para cada conceito forjado historicamente, existe uma ideologia. Processo que, contextualizado dentro de determinado período da história, permite ver como os termos se tomaram idéias em determinado momento.
Perpassa todo o livro a tensão entre as formulações de caráter universalista e relativista, evitando-se cair nos extremos "do monólogo ou da guerra". Estamos diante da discussão não apenas da diversidade de grupos e opiniões, mas também da questão sobre a existência,ou não de valoreslnoI1nas universais ou particulares que marcam nossas ações.
A recuperação destes temas e autores realizada por Todorov não deve ser percebida como mais uma história do pensamento. Precisamos contextualizá-Ia. Por que um intelectual búlgaro, morador na França, faz um exercício de recuperação destes autores e temas? O atual contexto francoeuropeu dos discursos nacionalistas - a exemplo do Le Pen na França pedindo restrições aos estrangeiros -, coloca-nos diante da retomada dessas temáticas.
O livro de Todorov nos possibilita perceber que estes discursos são, de tempos em tempos, atualizados, em particular dentro da tradição do pensamento rancês. Os europeus ocidentais e os franceses em particular sempre tiveram um olhar privilegiado para o restante do mundo, ou seja, um olhar hegemônico, um olhar etnocêntrico. É neste contexto que se pautam, para as ciências
humanas, as temáticas do etnocentrismo/relativismo, raça/racismo.
A opção por dialogar dentro dessa diversidade de pensamento traz ao texto inúmeras citações sem tomá-Io pesado, possibilitando também ao leitor se posicionar perante o tema ou o autor em questão. Para aqueles que não se satisfazem com a abordagem tradicional destes assuntos, o livro oferece um aprofundamento da discussão entre as ideologias universalistas, que problematizam o que é ser da espécie humana, e relativistas que enfatizam as diferenças constitutivas dos individuos. A não exclusão de nenhuma dessas abordagens é que toma esse livro uma leitura instigante.
Na continuação desta reflexão são recuperados outros temas da filosofia política e da história como nações e nacionalismo, o exótico, no diálogo com Tocqueville, Michelet, Chateaubriand, etc, o que cria uma expectativa para a leitura do segundo volume da Reflexão francesa sobre a diversidade humana, a ser publicado. Todorov imprime um olhar antropológico sobre todos esses temas e autores, consegue, como diz Lévi-Strauss sobre os antropólogos, tomar-se "o astrônomo das ciências sociais", ou seja, a partir da constelação de temas abordados consegue ter uma visão particular sobre a di versidade humana.
Assim, possibilita a construção democrática plural da convivência do Nós, que neste contexto são os europeus, e os Outros que somos Nós.

Revista Horizontes Antropológicos

Pedro Pereira - Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary (Resumo)



Pedro Paulo Gomes Pereira
Antropólogo, Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. pedropaulopereira@hotmail.com

A antropologia e a teoria feminista têm como espaço privilegiado de reflexão a intersecção gênero, violência e subjetividade. Algumas abordagens nessa intersecção acabam por pensar violência como algo apenas eventual, olvidando-se frequentemente de assinalar suas íntimas conexões com o cotidiano. É comum também, e consubstancial a essa visão de violência como extra-ordinário, pensar o campo que envolve a violência em oposições rígidas, tais como: vítima e agressor, agência e opressão – existindo mesmo uma habitual associação entre agência e transgressão, como se a voz das vítimas só pudesse se manifestar transgredindo e enfrentado a Lei. Dessa maneira, como algo esporádico e fortuito, que se irrompe aqui ou acolá, a violência não desce ao cotidiano, e o trabalho diário na lida contra a violência é obnubilado em favor de certo tipo de violência acidental e de certo tipo heróico de resistência. É à busca de pensar as relações entre gênero, violência e subjetividade para além da oposição ordinário e extra-ordinário, evitando as ciladas dessa oposição, que a antropóloga indiana Veena Das vem se dedicando na última década e, como fruto dessa inquietação, publicou o livro Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary.

Veena Das iniciou suas investigações em Gujarat, um Estado da Índia que faz fronteira com o Paquistão. Encontrou ali famílias que haviam imigrado à Índia refugiadas de diversas regiões do Punyab – famílias que por décadas compartilharam com a antropóloga suas memórias e seus testemunhos da violência da Partição (divisão territorial efetuada pela Índia e Paquistão em 1947, pouco tempo após suas independências político-administrativas do império britânico). Esse "evento crítico" caracterizou-se pela violência entre mulçumanos, hindus, sikh e diversos grupos étnicos e religiosos que acabou por desalojar 14 milhões de pessoas e vitimar pelo menos um milhão. Uma das histórias recorrentes na Partição foi o rapto e a violação das mulheres. Das efetuou uma paciente aproximação etnográfica, na qual os relatos de violação, as reestruturações familiares, os testemunhos de violência se encontravam também com uma memória que, simultaneamente, se silenciava sobre o acontecido e se manifestava nas relações sociais, transformando as relações de parentesco. Uma década após, em 1984, Das se deparou com a violência contra os Sikh em Delhi, quando do assassinato de Indira Gandhi, então Primeira-Ministra da Índia. Às memórias dos eventos violentos de 1947, presentes mesmo que sob forma de um "conhecimento venenoso", somavam-se violências súbitas, dirigidas contra os Sikh, organizadas com a conivência do Estado, mas praticada por grupos ilegais, geralmente em forma de motins.

Das vem pesquisando esse contexto desde o início da década de setenta – como se pode acompanhar pelos seus trabalhos (1990, 2003, 2005), alguns já resenhados e relativamente conhecidos no Brasil (Das, 1995; Peirano, 1997). A busca geral da antropóloga é verificar como se estabelecem as relações sociais nesses eventos críticos (1995), de que forma o gênero é acionado como uma gramática que autoriza a violência (2007), qual o papel desempenhado pelo Estado (Das e Poole, 2004), qual o status das vítimas e sua capacidade de resistência, em que condições ocorrem os testemunhos e o que podem revelar (1995; 2007), entre outros. Life and Words persiste nessas indagações, propondo, no entanto, um novo e importante foco: averiguar como a violência desce ao cotidiano.

No prefácio ao livro, Stanley Cavell (2007:ix-xiv) sustenta que Das dialoga com Wittgenstein ao fazer sua análise girar em torno da dor. De fato, o diálogo existe e Life and Words é uma contribuição significativa aos estudos de violência, sofrimento e dor. Das utiliza o conceito de Wittgenstein de "formas de vida" para averiguar como a violência expõe os limites dos critérios de vida e se apresenta como fracasso da gramática cultural no estabelecimento e interpretação de formas de vida. Mas a importância desse livro – aquilo que a autora avança e acentua se comparado a seus trabalhos anteriores – reside, vale insistir, no lugar privilegiado atribuído ao cotidiano. Opção que enseja diversas indagações: de que forma esses eventos violentos, que se irrompem na vida social, descem ao dia-a-dia? que tipos de personagens atuam nessa descida? como agem? em quais gramáticas atuam e sob quais jogos? como operam os rumores? como as mulheres, que surgem como os principais atores desse processo, reconstroem o cotidiano como forma de resistir à violência?

*

O livro é dividido em duas partes. A primeira (capítulos 2 ao 5) aborda a Partição da Índia, em 1947, e os processos pelos quais a violência desse evento crítico é construída no dia-a-dia da Índia contemporânea. Nessa parte, tendo como interlocutores as vítimas da Partição, Das demonstra que os sujeitos enfrentam essa violência não com um acento excessivo numa memória paralisada, mas como forma de reabitar o cotidiano. Na segunda parte (capítulos 7 ao 11), Das reflete sobre a violência coletiva que se seguiu ao assassinato de Indira Gandhi, caracterizada pelos motins anti-Sikh. A abordagem se centra numa política de afetos que se transforma em atos de violência e conforma "comunidades de ressentimento".

Nas análises sobre a Partição, uma das questões principais abordadas pela autora é o rapto e a violação das mulheres. Durante a Partição, os Estados da Índia e do Paquistão adotaram normas que vinculavam a castidade da mulher à dignidade da nação. O corpo da mulher se transformou, então, num signo de comunicação entre homens, uma violenta linguagem da masculinidade. As mulheres violadas pelos raptores eram ora assassinadas, ora se suicidavam como condição de reentrar "honradas" na imaginação da nação; as sobreviventes eram marginalizadas e enfrentavam contínuas e árduas dificuldades para refazerem suas vidas. Segundo a autora, as mulheres raptadas circulavam nos debates políticos e permitiam ao Estado estabelecer um estado de exceção que sinalizava uma alteração do fluxo na troca de mulheres. Esse acontecimento permitiu um "contrato social" entre homens, fundamentado num "contrato sexual", que reivindicava os direitos dos homens sobre as mulheres. A violência infligida às mulheres não se referia apenas ao silenciamento de suas vozes, mas à transformação das mulheres em testemunhas da violência brutal, testemunhas silenciadas, mas que tinham em seus corpos os signos da violência – corpos apropriados numa disputa pela soberania que operava por uma gramática violenta de gênero.

Essas mulheres, cujos corpos são signos dessa gramática violenta de gênero, expressavam-se numa zona de silêncio. Das utiliza a metáfora de "conhecimento venenoso" para falar como as mulheres atuam sobre o sofrimento a elas infligindo. Quando conversava com as mulheres raptadas e violadas durante a Partição, indagando sobre suas experiências, Das percebeu uma zona de silêncio, principalmente sobre os fatos mais brutais. Surgia ali uma linguagem metafórica que se valia de figuras de linguagem para escapar de narrar diretamente a violação. As mulheres utilizavam a metáfora de uma mulher que bebia veneno e o mantinha dentro de si. Esse conhecimento manifestava-se no cotidiano e nas formas de perceber a vida, construindo um mapa das relações sociais, permitindo-lhes operar as experiências violentas no cotidiano, na reconstrução do dia-a-dia. Testemunhas silenciosas atuam – valendo-se do "trabalho do tempo" – sobre os relacionamentos familiares, num processo contínuo de reescrita. As mulheres parecem se valer de um tipo específico de compreensão: o tempo também possui agência, e trabalha. Saber lidar com o tempo significa atuar diretamente na reconstrução das relações e permite reabitar o mundo. O trabalho do tempo possibilita colocar essas mulheres na condição de sujeitos, no processo de reconstrução de suas relações familiares.

Para falar sobre o "trabalho do tempo", Das descreve a história de Manjit, uma das mulheres raptadas durante a Partição e resgatada pelo exército indiano. A narrativa acompanha Manjit do arranjo apressado de seu casamento (devido aos tumultos da Partição e seus efeitos nas famílias), à violência rotineira desferida por seu marido contra ela e, posteriormente, contra o primogênito do casal; aproxima-se das complexas negociações do casamento do filho de Manjit e mostra o deslocamento da violência de seu marido para a jovem esposa; assinala como essa violência faz com que se contrariem todas as convenções culturais, forçando o primogênito e sua esposa a se mudarem de casa; e finaliza retratando o esposo de Manjit adoecido e necessitando de cuidados, o filho de Manjit retornando à sua casa, onde a protagonista da narrativa consegue finalmente tranqüilidade para viver ao lado de seus netos. A história, muito mais rica do que pude descrever, conta-nos como o tempo não é algo simplesmente representado, mas um agente que trabalha nas relações, permitindo que sejam reinterpretadas e rescritas no embate dos agentes na construção de suas histórias.

Semelhanças entre essa poderosa história e O vento, filme de Victor Sjöström (1928), poderiam ser traçadas. No filme, uma jovem sulista vai ao Texas para se casar, mas é violentada no trem por um desconhecido. A jovem, entretanto, mata o agressor e enlouquece, em meio à tempestade de areia provocada pelo vento incessante. Embora ambos abordem a violência de gênero, a trama da narrativa é diferente: Manjit não enlouquece como a jovem Letty do filme, e sabe utilizar o trabalho do tempo a seu favor. Contudo, nas duas narrativas temos a forte presença de outros protagonistas: na obra de Sjöström, o vento; no texto de Das, o tempo – ambos são agentes que aparecem como personagens principais da história.

O trabalho do tempo também se manifesta nas relações entre a Partição e os eventos que se sucederam após 1984 (a invasão do Templo Dourado de Amritsar, o assassinato de Indira Gandhi por seus guardas Sikh, a violência contra os Sikh). A localização e a atualização da violência contra os Sikh devem ser compreendidas como uma mescla de memórias dos sobreviventes da Partição, de uma gramática de gênero violenta – caracterizada por uma masculinidade que auto-proclama sua superioridade sobre um outro-inferior-feminino ou feminilizado –, de um Estado conivente e, de certa forma, fomentador da violência. As relações do cotidiano processam sentimentos de raiva e ódio e permitem, ao mesmo tempo, um trabalho de reconstrução da sociabilidade, mas também possibilitam o incremento desses sentimentos de ódio que podem ser traduzidos em atos de violência, como o assassinato dos Sikh.

O passado tem um caráter indeterminado. O presente se converte no lugar onde elementos do passado que foram rejeitados podem assediar o mundo. O acontecimento sobrevive em versões diversas dentro da memória social dos diferentes grupos sociais. Das sustenta, então, que o rumor ocupa uma região da linguagem que pode fazer experimentar acontecimentos e, mais do que se apresentar como um ato externo, termina por produzir no mesmo ato em que enuncia. Os processos de tradução e rotação funcionam para atualizar certas regiões do passado e criam um sentido de continuidade entre os acontecimentos, conectando-os entre si. No caso dos acontecimentos pós-assassinato de Indira Gandhi, Das assinala como diversas correntes de rumores se combinaram para criar uma sensação de vulnerabilidade entre os hindus e fazer supor que os Sikh seriam desprovidos de subjetividade humana. O rumor acabou por fazer os hindus se pensarem como uma coletividade instável e em perigo – o que autorizou a violência contra o outro desprovido de subjetividade.

O rumor ressalta a dimensão do impessoal na vida social. Os rumores exercem um "campo de força" que atrai as pessoas para agirem de determinada maneira. Trata-se, portanto, de um tipo de violência que nubla as distinções claras entre agressores e vítimas. A impessoalidade e esse campo de forças propiciam atos morais que não seriam executados em condições diferentes, e pessoas comuns são arrastadas para cometer atrocidades (Das, 2010). O rumor, enfim, embaralha e complexifica as categorias convencionais que temos para pensar a violência e se constitui num modelo para complexificarmos as definições de agência. A força perlocucionária do rumor mostra a fragilidade do mundo, e como as imagens de desconfiança, que podem ser apenas virtuais, tomam uma forma volátil, e a ordem social se vê ameaçada por um acontecimento crítico.

A análise do rumor, além de focalizar o poder do impessoal (Das 2010:137), apresenta também a agência de determinados atores que não se encaixam naquilo que geralmente se imagina como "agência". Por exemplo, noções como paciência e paixão são mais vinculadas à passividade do que à resistência. A descida ao cotidiano, entretanto, abala nossos modelos pré-estabelecidos de resistência ou, pelo menos, apresenta outras possibilidades de pensá-los. Das encontra uma forma de lidar com a violência que se distancia dos modelos de resistência heróica, tal como os percebidos no modelo clássico de Antígona. A antropóloga indiana conta, então, a história de Asha, uma mulher punjab, que vivia com a família de seu esposo na fronteira do Paquistão no período da Partição. Depois do conflito, teve que abandonar sua "família política" por diversos motivos relacionados à sua condição de mulher e de viúva. Ela se casa com um comerciante bem estabelecido. Depois de muito tempo e de uma insistente ação de Asha e de sua cunhada, termina por reatar os laços com sua família política. Das contrasta as ações de Asha às de Antígona. Para a antropóloga, se a figura de Antígona oferecia uma maneira de pensarmos voz e agência, a figura de Asha mostra um sujeito genereficado que possui um "conhecimento venenoso", mas que constrói um trabalho cotidiano de reparação. Diferentemente de Antígona, a agência não está no heróico e no extra-ordinário, mas na descida ao cotidiano, no preparo diário da alimentação, na arrumação e organização dos afazeres, no cuidado e cultivo persistente das relações familiares. São essas ações cotidianas que possibilitam a criação de um discurso de reparação. Ao justapor o modo "menos dramático" de discurso utilizado por Asha ao discurso de Antígona, Das sugere que mulheres como Asha ocuparam uma zona diferente ao descer ao cotidiano em lugar de ascender a um "plano superior" (Das, 2007; 2010). Se nos dois casos percebemos mulheres como testemunhas – no sentido de se encontrarem no marco dos acontecimentos e de serem por eles afetadas –, Asha fala da zona do cotidiano, ocupando os signos das feridas que a afetaram e estabelecendo uma continuidade no espaço da devastação.

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Estes breves comentários nem de longe dão conta da argúcia dos argumentos, da riqueza das histórias descritas e do impecável estilo de Veena Das. Tentei apenas desenhar em traços largos os movimentos principais da obra. E, para finalizar, com objetivo apenas de ressaltar alguns aspectos, faço algumas considerações mais gerais sobre Life and Words.

Bronislaw Malinowski (1935) revelou em suas "confissões de ignorância e falha", no apêndice de Coral Gardens and Their Magic, que uma fonte geral da inadequação de seu material consiste no fato ter sido seduzido pelo dramático e excepcional e ter negligenciado o dia-a-dia (ver Martin, 2007). Porém, acompanhar o dia-a-dia de nossos interlocutores demanda tempo e uma pesquisa de campo prolongada (nem sempre possível, se pensarmos, por exemplo, na realidade brasileira). Sem uma interação cuidadosa, por anos a fio, muito do cotidiano se perde e o antropólogo acaba seduzido pelo "dramático e excepcional". Se isso vale mesmo para antropólogos que tiveram a oportunidade de ficar por muito tempo em campo, como Malinowski, há que se conjecturar as dificuldades de, em períodos curtos, se conseguir uma aproximação razoável às práticas cotidianas. Life and Words é interessante para refletirmos sobre o assunto. Ao analisar o trabalho de restabelecimento da sociabilidade após experiências de ruptura proporcionadas pela violência, assinala Das a persistência de zonas de silêncio nas quais a emergência da voz feminina se dava nem sempre pelo dizer, mas pelo mostrar. O mostrar não é algo que surge apenas de narrativas ou de reivindicações, mas no fabrico diário de modos de viver. Donde a necessidade de uma laboriosa prática etnográfica que se volte para o dia-a-dia. Das parece sugerir que somente um trabalho de campo que saiba manejar o "trabalho do tempo" conseguirá ouvir o que se tem a dizer, perceber os dizeres do silêncio e compreender o que os interlocutores desejam mostrar. Afinal, é a intensidade e persistência na investigação que possibilitam um vínculo com os interlocutores.

Todavia, não é estranha à história da antropologia a figura do "nativo" convertido simplesmente num vetor de informações (o informante), destituído de nome e sem traços que o singularize. A despeito desse movimento, e justamente pela intensidade do empreendimento etnográfico que, em maior ou menor grau, propicia vínculos com os interlocutores, alguns nomes ficaram marcados: Ahuia de Malinowski, Tuhami de Crapanzano, Ogotemmeli de Griaule, Muchona de Victor Turner, Pa Fenuatara de Raymond Firth, Adamu Jenitongo de Stoller. Das nos apresenta outros personagens. No decorrer do livro, a antropóloga se envolve e é interpelada pelos seus interlocutores, enredando-se no drama de suas vidas, estabelecendo vínculos que, em alguns casos, perduram por décadas. Certamente as mulheres desses eventos críticos narrados por Das, como Manjit e Asha, ficarão na história da disciplina. Ademais, a antropóloga lhes confere um lugar privilegiado, reivindicando uma equiparação às heroínas das tragédias gregas: Asha é igualada à não menos que Antígona.

Em Life and Words, as protagonistas são os interlocutoras da antropóloga, que não apenas narram suas histórias, mas formulam sofisticadas teorias sobre tempo, dor, sofrimento, adoecer; teorias sobre formas de relação. A antropóloga procura alçar a teoria de seus interlocutores ou, para falar em termos mais filosóficos, alçar suas práticas de conhecimento. O que não significa um abandono das discussões teóricas e dos conceitos antropológicos; antes, trata-se de intensificar as conexões entre os saberes. Daí, por exemplo, o intenso diálogo estabelecido com Wittgenstein (cf. Das, 1998) – diálogo ancorado numa longa experiência etnográfica, e numa lida cuidadosa com as teorias, sejam elas de mulheres punjab ou de filósofos austríacos. Apesar desse cuidado, teço duas pequenas observações.

1) Das lembra que a relação da formação do sujeito e a experiência de subjugação foi compreendida por Foucault, em sua análise da disciplina do corpo, por intermédio da metáfora da prisão: "a alma é a prisão do corpo". Entretanto, ressalta a antropóloga, ao tentar compreender as complexas conexões existentes entre violência e relações de parentesco, percebeu que os modelos de poder-resistência ou a metáfora da prisão são excessivamente grosseiros como ferramentas para entender o "delicado trabalho de criação do sujeito" (2007:78). Pelo contrário, continua a autora, ao explorar a profundidade temporal propiciada pelos momentos originários de violência, e o caráter fundamental da vida cotidiana, em vez de utilizarmos metáforas de prisão para significar as relações entre critérios externos e estados internos (corpo e alma), devemos pensar que eles se recobrem um ao outro, compreendidos sempre em união. A ressalva que faço – reconhecendo, evidentemente, a importância do achado etnográfico de Das – é que o autor de Vigiar e Punir é também autor de História da Sexualidade, e as exegeses da obra de Foucault vêm revelando em sua trajetória uma complexificação crescente do enfoque sobre a formação do sujeito e da subjetivação (ver Goldman, 1999). Qualquer análise que se concentre apenas na abordagem de Vigiar e Punir será necessariamente parcial, não alcançado a complexidade da abordagem de Foucault. Judith Butler (1997), por exemplo, em sua obra sobre a vida psíquica do poder (ou seja, sobre as relações entre "sujeição" e "tornar-se sujeito"), revela um Foucault atento às sutilezas daquilo que Das denominou de "delicado trabalho de criação do sujeito". A busca de compreender as práticas de conhecimento de nossos interlocutores não nos autoriza a simplificar as teorias que manejamos, quaisquer que sejam, e mesmo sob a justificativa de priorizar o conhecimento nativo. Ainda que se argumente que a utilização de Foucault em Das foi pontual, há que se indagar sobre o porquê de tal uso, já que o autor poderia atuar positivamente no desenvolvimento da autora e não apenas como algo tosco ("crude") a ser evitado.

2) Outra questão que me intriga na composição geral de Life and Words é que a autora, talvez pela inércia constitutiva da linguagem, parece demasiadamente colada aos significantes "homem" e "mulher" na sua concepção de gênero. Das está refletindo sobre um quadro em que a gramática de gênero parece girar quase exclusivamente em torno da heterossexualidade. Mas, ainda assim, sinto a falta de uma maior problematização sobre a concepção de gênero e da violência da própria gramática cultural heteronormativa. Quando Butler (1990) redefiniu gênero como performance, interrogou-se sobre a produção e reprodução do sistema sexo/gênero normativo e binário, concluindo que, da mesma maneira que sexo e sexualidade não são a expressão de si ou de uma identidade, mas o efeito do discurso sobre o sexo – um dispositivo disciplinar, portanto –, o gênero também não é uma expressão do sexo. Se a feminilidade não deve ser necessária e naturalmente a construção cultural de um corpo feminino; se a masculinidade não deve ser necessária e naturalmente a construção cultural do corpo masculino; se a masculinidade não é colada aos homens e se não é privilégio dos homens biologicamente definidos; é porque o sexo não limita o gênero, e o gênero pode exceder os limites do binarismo sexo feminino/sexo masculino. Todo gênero é uma performance de gênero, ou seja, uma paródia sem original. Sem querer me estender nessa questão, cabe aqui uma indagação sobre a pressuposição de gênero nos marcos estritamente heterossexuais ou numa gramática em torno de significantes hetero e também de uma possível homogeneização das mulheres que acabaria por criar um universalismo mascarado. Sobre esse último ponto, quem sabe não seja mais interessante perceber as mulheres não como um grupo explorado, mas uma coalizão política a construir, e que não se define unicamente pelo gênero ou pela opressão de gênero – posição esta, inclusive, que se aproxima ao próprio movimento teórico empreendido por Das. Essa questão precisa ser mais bem observada. De qualquer forma, um diálogo mais intenso com teóricas como Judith Butler, Teresa de Lauretis e Marilyn Strathern numa discussão conceitual da categoria gênero, poderá ser frutífero para futuros trabalhos de Veena Das.

Independentemente dessas observações, Life and Words consegue, de forma convincente, abordar a intersecção gênero, violência e subjetividade, demonstrando que a vida cotidiana é, para repetir Stanley Cavell, ao mesmo tempo, uma busca e uma pesquisa [a quest and an inquest]. Veena Das destaca, com persistência e delicadeza, os ensinamentos do poeta Rainer Maria Rilke ao aprendiz Franz Kappus, em famosa missiva que acabou por ser publicada em Cartas a um jovem poeta: "Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas".

Referências bibliográficas

Butler, Judith. The psychic life of power: theories in subjection. California, Stanford University Press, 1997.
__________. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York, Routledge, 1990.
Cavell, Stanley. Foreword. In: Das, Veena. Life and Words. Violence and the descent into the ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007, pp.ix-xiv.
Das, Veena. Listening to Voices. An interview with Veena Das. (interview by DiFruscia, Kim Turcot). Alterités, vol. 7, nº 1, 2010, pp.136-145.
__________. Life and Words. Violence and the descent intoordinary. Berkeley, University of California Press, 2007.
__________. Sexual violence, discursive formations and the state. In: Coronil, F. e Skurski, J. (eds.) States of Violence. Michigan, Univ. Mich. Press, 2005, pp.323-425.
__________. Trauma and testimony. Implications for political community. Anthropological Theory, vol. 3, nº 3, 2003, pp.293-307.
__________. Wittgenstein and anthropology. Annual Review of Anthropology, vol. 27, 1998, pp.171-195.
__________. Critical events. An anthropological perspective on contemporary India. Delhi, Oxford University Press. 1995.
__________. Our Work to Cry: Your Work to Listen. In: Das, Veena. (ed.) Mirrors of Violence: Communities, Riots and Survivors in South Asia. Delhi, Oxford University Press, 1990, pp.345-99.
__________ e Poole, Deborah. (eds.) Anthropology in the margins of the State. New Delhi, Oxford University Press. 2004.
Goldman, Márcio. Objetificação e subjetificação no último Foucault. In: Alguma Antropologia. Relume Dumará, Rio de Janeiro, pp.65-76.
Malinowski, Bronislaw. Coral Gardens and Their Magic: a Study of the Methods of Tilling the Soiland of Agricultural Rites in the Trobriand Islands. New York, American Book, 1935.
Martin, Emily. Violence, language and everyday life. American ethnologist, vol. 34, nº 4, pp.741-745.
Peirano, Mariza. Onde está a antropologia. Mana, vol. 3, nº 2, 1997, pp.67-102.

* Resenha do livro Das, Veena. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007, 281p. Recebida para publicação em agosto de 2010, aceita em setembro de 2010.

Mário Cesar Filho - Antropologia da Criança (Resumo)


Com a palavra, as crianças
Livro discute diferentes visões sobre a infância apresentadas pela antropologia

Mário Cesar Filho

O universo infantil pode surpreender muitos adultos. Afinal, o que é ser criança? Um ser imaturo ou um sujeito social, capaz de atuar ativamente nas relações em que se engaja? Para a antropóloga Clarice Cohn, autora do livro Antropologia da criança , reconhecê-la é assumir que não se trata de um “adulto em miniatura” ou de alguém que se treina para a vida adulta. É entender que, onde quer que esteja, ela interage ativamente com os adultos, outras crianças e com o mundo, sendo parte importante na consolidação dos papéis que assume e de suas relações.

Este livro traz um mapeamento das várias abordagens sobre antropologia da criança, desde os primeiros estudos dos anos 1930 até os mais recentes. A autora discute ainda algumas questões pré-concebidas, como a imagem de que a criança é um ser incompleto, a ser formado e socializado. A partir dos anos 1960, os antropólogos perceberam que a diferença entre crianças e adultos não estaria na quantidade do saber, mas na qualidade – ou seja, a criança não sabe menos, sabe outra coisa.

Outra discussão central da obra envolve a definição do que chamamos de infância. Para muitos especialistas, como o historiador francês Philippe Ariès, essa noção é uma elaboração social e histórica do Ocidente. Ela foi construída ao longo dos séculos na Europa, simultaneamente com mudanças na composição familiar, nos conceitos de maternidade e paternidade, no cotidiano das crianças e principalmente na fase da educação escolar.

A criança e a infância têm sido foco de análise de vários campos do conhecimento, como pedagogia ou psicologia. O olhar antropológico pode ajudar a fundamentar essas pesquisas, rever os modelos pedagógicos vigentes e oferecer novos parâmetros para a educação escolar. A antropologia se dedica a compreender o ponto de vista do objeto estudado – no caso, ela busca saber como as crianças vivem e pensam o mundo, respeitando seu contexto sócio-cultural. Para isso, o antropólogo recorre a técnicas como a etnografia, passa a conviver com seu objeto de estudo e experimenta as mesmas situações.
Em seu mestrado em antropologia pela USP, a autora de Antropologia da criança estudou a concepção de infância e aprendizado entre os Xikrin (fotos: Clarice Cohn).

A obra mostra ainda como diferentes culturas lidam com a criança e o sentimento de infância. A autora oferece diversos exemplos vivenciados por ela durante o trabalho de campo realizado entre os Xikrin, no Pará – a concepção de infância e aprendizado desses índios foi o tema de seu mestrado pela Universidade de São Paulo. No livro, ela conta que eles deixam de ser criança apenas quando têm seus próprios filhos.

Antropologia da criança faz parte da série ciências sociais da coleção Passo-a-passo, editada pela Jorge Zahar. Escrito em linguagem acessível, o livro se deixa ler com prazer e funciona como uma introdução ao tema para leigos e interessados em geral. Para quem quiser se aprofundar em algum dos temas abordados, a autora traz sugestões de leituras e referências bibliográficas comentadas.
Antropologia da criança
Clarice Cohn
Rio de Janeiro, 2005, Jorge Zahar Editor
60 páginas
Revista CIÊNCIA HOJE


Oswaldo Caldeira - Café Manduca: Uma História Recontada (Resumo)


Belém: Secult/Oswado. Caldeira Prod. Cinematográficas, 2004, 128p.

Oswaldo Caldeira, cineasta premiado e crítico de cinema, é professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Seu roteiro "As histórias de Alice", inspirado na vida de Manduca, seu avô, foi premiado no Concurso Petrobrás Cultural 2004/2005 e está em fase de pré-produção.

O livro que ora apresento é a história da família do autor. Publicado com uma diagramação incomum, que chega a dificultar sua identificação, reconta as histórias do Café Manduca, temperadas pelo prazer com que o autor se dedicou à montagem das imagens. Estas provêm de documentação primária, quadros, fotografias, das entrevistas de amigos e contemporâneos, de notícias e anúncios de jornais. Resultam de uma pesquisa cuidadosa, procurando reconstituir o Café Manduca e outras iniciativas de seu avô, através dos anos, das gerações, e das cidades em Portugal e no Brasil.

Hoje, estudos multidisciplinares construíram pontes para que palavra e imagem se complementem, quando a capacidade de sugestão da imagem consegue suprir o poderoso estímulo do que não foi dito, e o texto alimenta e aprofunda o que a imagem sugeriu. São estas combinações de texto e imagens que merecem uma leitura crítica deste livro e das perplexidades que ele traz para o leitor.

A experiência de Oswaldo Caldeira com imagens fixas (as fotografias) e imagens em movimento (documentários históricos) está aqui transposta para uma História da Família. O autor tenta se ocultar por trás das inúmeras vozes que ressoam, mas não as desdobra ou generaliza numa interpretação. Restringiu-se a uma literal montagem, que reconta os textos jornalísticos e os depoimentos, intercalando as imagens literárias, plásticas e fotográficas que embelezam o livro.

A mobilização dos inúmeros colecionadores espalhados por toda Belém, professores, jornalistas, garçons, estudantes e curiosos que cercavam a esquina, ou o "canto" escolhido por Manduca para a instalação de seu Café, é que permitiu a reconstituição do cotidiano do movimento do estabelecimento e das ruas ao redor, com sua Casa de Leilões — que se anunciava como situada defronte ao Café Manduca —, além de livrarias, arquivo, jornais e escolas, com uma população masculina atuante, já que sua localização central fazia-o participar do que quer que acontecesse na cidade.

A quantidade e a qualidade das colaborações obtidas diversificaram por demais o andamento e o foco narrativo. Talvez num documentário cinematográfico, com um tempo reduzido de exposição das imagens ao espectador, ficando umas como fundo e outras em primeiro plano, essa diversidade do material não perturbasse a leitura. Num livro em que se vêem ou lêem as imagens e os depoimentos isolados, uns dos outros, essa diversidade dificulta a absorção do sentido. Ao folhear essas belas páginas, pode-se ficar em dúvida sobre do que é que se trata. Da beleza bucólica de Portugal? Da imigração dos portugueses no início do século XX? Da família Corrêa da Silva? Dos empreendimentos e das idéias de Manuel Corrêa da Silva? Da situação sanitária de Santos antes da construção do porto? Da condição sanitária de Belém, antes da eletrificação e das posturas municipais de higiene? Da mobilidade dos imigrantes?

O livro foi escrito por um cineasta e o material reunido era-lhe precioso demais para admitir um peneiramento. Vai sendo apresentado por partes, com diferentes estilos e através de imagens e textos. O personagem principal é o avô Manoel Corrêa da Silva — apelidado de Manduca desde o nascimento em Galafura, Portugal —, rodeado principalmente de mulheres muito corajosas.

Veio para o Brasil com 9 anos de idade, quando seus pais deixaram Portugal em busca de melhores condições de vida. Desembarcaram, com muitos outros portugueses, em Santos, antes da construção das Docas e das reformas urbanas que a tornariam o grande porto do café. Sem preparo algum, Manduca viu-se órfão numa cidade desconhecida, pois o trabalho na remoção do lodo do porto vitimou o pai através da febre amarela. Ajudou, desde então, o sustento da mãe e dos irmãos com os trabalhos pesados e sem horário com que podia arcar, mal chegando a ter uma escolarização digna desse nome.

Quando fez 21 anos, em 1899, casou-se com uma conterrânea de 14, capaz de ir contra a vontade dos pais para escolher o seu par. Apenas com a força da mocidade e a vontade de vencer enfrentaram a vida em comum longe de suas raízes.

Em 1901 Manduca resolve tentar a vida em Belém do Pará, que vivia o surto da borracha e era, então, das principais cidades brasileiras. Ele e a mulher trabalharam intensamente da madrugada até a noite, cozinhando, empurrando carrinho de entregas, ajudando conterrâneos em açougues e padarias e mostrando-se capazes de enfrentar qualquer tipo de adversidade — para juntar dinheiro.

A decisão e o empenho em melhorar a vida e a crença na capacidade de trabalho deram a eles uma mobilidade, uma capacidade de adaptação e uma sabedoria, independente de suas condições sociais e de escolaridade. Essa melhoria de vida incluía sempre, em quase todos os casos, a ambição de fazer os filhos estudar, fosse nas capitais, nos seminários ou na Europa.

A solidariedade entre imigrantes portugueses fica bem expressa em seus contactos para conhecer a situação econômica e sanitária das cidades brasileiras, como ao se tornar empregado e sócio dos patrícios, estabelecidos anteriormente. Manduca tem garçons portugueses, e o menino de 14 anos, que lhe foi recomendado para o Café, ali ficou por toda a vida, terminando por se tornar seu sócio. A sugestão de que prometera ao pai levar adiante o plano de ascensão social, e a Carolina, dar a ela o que ela quisesse, quando Manduca nada tinha além da juventude e da força de trabalho, simbolizam uma ambição positiva, que só poderia trazer resultados, para aquele homem de um metro de cinqüenta e nove centímetros de altura, por ser ele de uma inteligência extraordinariamente empreendedora.

Antes de abrir o seu café, no centro comercial de Belém, Manduca estudou com o maior empenho o local e as condições em que a sua iniciativa teria êxito: a roupa e a limpeza dos empregados, o capricho do serviço, com tudo brilhando, o modelo original das xícaras, a qualidade dos produtos oferecidos, a necessidade do tratamento cordial dos fregueses e da apresentação de novidades. Rodeado por redações dos principais jornais, Manduca pôde verificar nos exemplares deixados no Café que todos os vizinhos, das duas ruas, faziam anúncios de seus negócios. Discutiu com os jornalistas a eficácia e as vantagens que um anúncio poderia trazer. Verificou que não só se tornaria conhecido de muito mais pessoas, além das que já freqüentavam seu café, como se destacaria dos concorrentes. Além disso, teria melhor relacionamento com os diretores dos principais jornais de Belém. Iniciou, então, uma série de anúncios personalizados, chamando a atenção para a excelência do estabelecimento e para as novidades com que contribuía para o conforto de seus freqüentadores. Acompanhando o progresso tipográfico dos jornais, os anúncios foram crescendo e, de pequenas notas, passaram a tomar maior espaço e ser ilustrados por desenhos das melhorias introduzidas para aperfeiçoamento de seus produtos: a importação de um técnico do Sul, para a moagem do café, os carrinhos comprados para sua distribuição e uma bem montada vaccaria, que posteriormente torna-se um estábulo, com endereço próprio, para garantir a qualidade do leite. Mesmo sendo o café um ambiente exclusivamente masculino, aparece uma figura de mulher saboreando o produto distribuído pela cidade.

Em 1908 foi publicado O Pará Manufactureiro, redigido para a Exposição Nacional. Pretendia reunir todos os produtos das indústrias agrícolas e pastoris, manufatureiras e outras, de artes liberais, para avaliar as forças produtivas do país numa exposição no Rio de Janeiro. Nessa publicação o Café Manduca apareceu como o mais afamado e popular estabelecimento de beneficiar café de todo o Norte do país.

A partir de então, a vida de Manduca se transformou. Adquiriu propriedades no Rio de Janeiro e passou a freqüentar a Igreja Presbiteriana, e foi, com toda a família, batizado nessa crença. É a partir de então que se faz registrar de terno e gravata, sempre em imagens obtidas nos principais fotógrafos das cidades (Rio de Janeiro e Porto), atestando sua ascensão social. Depois dos anúncios, são as fotografias que passam a registrar a sua memória e a de sua família, com notas que comunicam entre os "Fatos e Comentos" do jornal O Puritano (Rio de Janeiro) da Primeira Igreja Presbiteriana, os novos filhos e as novas iniciativas. Na cidade do Porto, para onde se retirou em 1914, fundou o Portugal Evangélico que, mais do que recuperar uma fábrica de calçados falida a que deu o nome de Atlas, era uma renovação improvável do menino descalço e analfabeto, que aos nove anos se viu órfão e encarregado de cuidar da mãe e dos irmãos em Santos.

Essa História Recontada é construída pela complementaridade do texto visual e do texto verbal. Os aspectos da pobreza, do sofrimento e da doença ficam atenuados pelos recursos tecnológicos da fotografia bem utilizados: o ângulo, a cor, a distância, a ausência do odor e a dissimulação da sujeira. Em Café Manduca, a beleza e a tranqüilidade das imagens iniciais das margens do Doiro e da Igreja de São Vicente de Galafura são acentuadas pelas passagens poéticas de Miguel Torga. Já as belas reproduções do porto de Santos, em 1882 e 1888, do artista local Benedicto Calixto, com aquela floresta de mastros e a harmonia da vista do casario santista de anos depois, velam inteiramente a situação de insalubridade daqueles mangues, antes das obras de saneamento e da construção do porto, onde uma epidemia de febre amarela foi completada por um surto de varíola. Os cortiços onde iam-se amontoando os imigrantes ficam soterrados no colorido dos quadros. A fotografia em preto e branco de imigrantes, com seus sacos e baús e fisionomias carregadas, que o livro também apresenta, é mais representativa da situação penosa que o texto depois revela, sobre a instalação precária e a mobilidade dos recém-chegados.

No início do século XX, o chefe de família resolve se transferir de um lugar para outro, de Santos para Belém, de Belém para o Rio de Janeiro, do Rio para o Porto, em Portugal, sem que os membros da família saibam o que o levou a tomar as resoluções e as mudanças de casa e de país.

Os depoimentos não revelam apenas apresentações subjetivas de freqüentadores do café, mas demonstram como sua localização, no centro comercial e político de Belém, foi um fator decisivo para o sucesso. Em seus 55 anos de vida, o café foi um local privilegiado de sociabilidade masculina, reunindo personagens que o consideravam sob diferentes óticas. A freqüência de políticos e jornalistas o tornou cenário de reflexões e intrigas, tendo até havido a ameaça de ser fechado por suspeita de ser um centro de conspirações. Os Vilhena, que ficaram com o café quando Manduca voltou para Portugal, ainda mantiveram essa situação — eram chamados de Os Manducas e criaram um time de futebol, o Manduquinha Futebol Clube.

Os retratos envelhecidos, reunidos do interior do café e preservados por Orlando Vilhena, filho do sócio de Manduca, são registros dos empregados e de uma figura mítica que passara a fazer parte dele: o engraxate e corredor que recitava a Divina comédia e era o próprio historiador da casa. A profusão de documentos, fotos e recortes de jornal que Orlando Vilhena proporcionou ao neto de Manduca significava para ele a história da família Vilhena, pois o pai viera com 14 anos e ali ficou até o fim da vida. Diversificou a produção da casa com charutos e polpa de tamarindo, e observou que a presença de jornalistas, estudantes de engenharia e políticos já começava a ser diferenciada pela companhia das mulheres que agora trabalhavam nos escritórios.

Nessa parte do livro as fotografias pouco acrescentam, tanto os instantâneos do interior do café quanto as fotos coloridas das ruas ao redor. Algumas, como a que ilustra "o crime da barba inacabada", é uma reprodução de um jornal que só nos revela o uso cotidiano das palhetas (chapéu de palha urbano, da década de 1930). O texto, habilmente composto pelo autor com as diferentes versões dadas ao episódio, é que nos informa sobre o evento fatal para José Avelino, presidente da União Auxiliadora dos Estivadores do Lloyd Brasileiro, que interferiu desastradamente num conflito das facções baratistas e frente-unistas.

Os depoimentos são uma fonte riquíssima para o conhecimento da história dos jornais de Belém, de seus personagens e de seu funcionamento precário, dependente da política local e dedicado à preservação das ocorrências locais.

Esta leitura do livro de Oswaldo Caldeira, empreendida para demonstrar a complementaridade dos textos verbais e dos textos visuais, termina privilegiando o texto verbal de um especialista em imagens em movimento. É, contudo, um exemplo significativo de que é preciso avaliar a adequação da imagem ao que se quer transmitir, e de que às vezes o texto verbal é a melhor opção. Antes ainda, é preciso conhecer a intenção do autor: a procura do melhor meio de transmitir os resultados de sua pesquisa. Mas as análises que a Antropologia nos ensina não são as únicas formas de combinar adequadamente imagens e palavras para aperfeiçoar a compreensão do material publicado. É possível querer unicamente reunir imagens que correspondem à memória do autor. É também possível ter o desejo de fascinar o leitor pela beleza ou pelo pitoresco das imagens. Ocorre também o caso de desejar desmentir pela imagem o que o texto verbal expressou, ou complementar-lhe o sentido.
Revista Brasileira de História

Andreas Hofbauer - Antropologia brasiliana (Resumo)


Roquette-Pinto não é uma personagem desconhecida: sobretudo para aqueles que estudam a história da ciência e para quem se interessa pelos primórdios do desenvolvimento do rádio e do cinema no Brasil, Roquette-Pinto era um homem de muitos talentos e de muitos projetos. Executou múltiplas atividades profissionais, muitas vezes paralelamente, e ocupou vários cargos importantes durante a sua vida. Criativo, inventivo, com fortes convicções morais e políticas, envolveu-se nas mais diversas questões que preocupavam a intelectualidade brasileira da primeira metade do século XX: pesquisava, opinava e intervinha. Por toda esta trajetória, não deixa de ser curioso que existam relativamente poucos estudos sobre Roquette-Pinto e nenhuma biografia completa a seu respeito.

Neste sentido, o livro Antropologia brasiliana. Ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto, organizado por Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá, veio para suprir uma enorme lacuna. As organizadoras optaram por não seguir uma exposição cronológica das atividades deste grande intelectual, mas escolheram tópicos que julgaram centrais na diversificada produção de Roquette-Pinto e convidaram especialistas para analisar suas contribuições para cada uma das temáticas específicas. Os ensaios foram agrupados em quatro seções, incitando o/a leitor/a a aprofundar o diálogo entre elas: "perfil e trajetória", "positivismo e nação", "antropologia e população", "ciência e ação". Na primeira parte, foi incluído ainda um texto inédito do próprio Roquette-Pinto ("Ciência e cientistas do Brasil", 1939), elaborado para uma conferência proferida no Palácio do Itamaraty. Nesse texto, Roquette-Pinto não somente expõe a sua maneira de ver a história da ciência no país, mas também avalia o papel e o lugar que ele próprio atribui a si mesmo neste processo. O manuscrito, que foi encontrado pelas organizadoras durante a sua pesquisa no acervo pessoal do intelectual (que se encontra hoje sob a guarda da Academia Brasileira de Letras), completa o quadro dos textos.

Desta forma, o livro se revela um mosaico de abordagens sobre a vida de Roquette-Pinto: oferece leituras sobre uma mesma personagem partindo da análise de um tema específico. O resultado são reflexões que, inevitavelmente, em diversos momentos, se cruzam com, e até se sobrepõem a, abordagens que têm outra área de atuação de Roquette-Pinto como foco de análise. Este efeito intencionado pelas organizadoras, que procura espelhar a vida multifacetada do cientista, ganha reforço visual na bela capa montada por Jayme Moraes Aranha Filho, que construiu um retrato do homenageado a partir de um arranjo de centenas de imagens coloridas, que apresentam, na sua maioria, aparelhos de época voltados para a comunicação: microfones, máquinas de escrever, vitrolas, rádios etc.

Os vários textos que compõem a coletânea elucidam que não é possível entender a vida de Roquette-Pinto sem levar em consideração o seu espírito nacionalista e a sua forte crença na ciência, além do espírito positivista que compartilhava com tantos outros pensadores da época. "Creio nas leis da Sociologia positiva e por isso creio no advento do Proletariado, conforme foi definido por Augusto Comte...", afirma o nosso pensador em 1935. Roquette-Pinto era um daqueles intelectuais que apostavam no progresso por meio do aprofundamento do conhecimento científico e de sua disseminação pela educação popular. Ele via nas invenções tecnológicas um potente meio de transformação da sociedade. Acreditava firmemente na força missionária e na função utilitária da ciência, atribuindo-lhe a capacidade de dar respostas para o problema da nação e de preparar o caminho para a modernização. Ao mesmo tempo, o envolvimento pessoal com questões sociais não permitia que Roquette-Pinto se transformasse numa pessoa dogmática. Prevalecia, portanto, um perfil que as organizadoras do livro chamaram de "humanismo científico".

As distintas contribuições valorosas do livro destacam a importância da participação de Roquette-Pinto na expedição Rondon, em 1912. O contato direto com o sertão levaria o jovem cientista, formado em medicina, a rever a visão do admirado Euclides da Cunha a respeito dos males do sertanejo, que Roquette-Pinto qualificaria, posteriormente (em Seixos rolados, 1927), de ilusória: de acordo com ele, os sertanejos não deveriam ser percebidos como seres inferiores, nem como incapazes, como avaliava Euclides, mas tão-somente como atrasados e ignorantes; nem o isolamento, nem as influências da mestiçagem, e sim muito mais o abandono do poder público explicaria a vida precária nos interiores do Brasil. Ponto alto da viagem foi o encontro com os índios Nambikwara. Fazendo uso do seu talento etnográfico, Roquette-Pinto produziu importantes registros e documentos: confeccionou uma das primeiras imagens cinematográficas dos índios e transcreveu músicas indígenas que inspirariam Villa-Lobos. O seu caderno de campo, que seria publicado sob o título Rondonia: anthropologia - ethnographia (1916), expressa a simpatia que sentia em relação aos indígenas; ao mesmo tempo, não esconde o seu ideário positivista-evolucionista, que fazia com que julgasse, por exemplo, a cerâmica indígena "rudimentar" e "grosseira", e a sua plumária "insignificante".

Como diretor do Museu Nacional (1926-1935), preocupava-se em desenvolver estratégias e meios que possibilitassem à população ter acesso ao desenvolvimento científico. Buscava transformar a instituição num museu pedagógico-educativo, numa "universidade do povo", segundo as suas próprias palavras. Para isto, lá instalou, inclusive, um auditório especial e incentivou escolas a frequentar o local. Com a fundação da Revista Nacional de Educação (1932), voltada para a educação e para a divulgação da ciência, das letras e da arte, e que seria distribuída gratuitamente, Roquette-Pinto realizou um sonho pessoal que, porém, duraria apenas dois anos.

Roquette-Pinto foi fundador da primeira emissora de rádio no Brasil, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro (1923), e também o primeiro diretor da instituição. Seu envolvimento com os "novos meios de comunicação" - rádio e cinema -, que via surgir e ajudava a consolidar, foi impulsionado pelas mesmas preocupações e convicções do cientista. O objetivo principal era criar programas de rádio e produzir filmes que apresentassem, de forma didática, os avanços da pesquisa científica e os progressos tecnológicos. Roquette-Pinto dirigiu alguns filmes e participou da feitura de roteiros de outros. Teve grande influência sobre a produção cinematográfica no período de 1936 a 1947, durante o qual ocupou o cargo de diretor do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Um pouco antes (de 1932 a 1934) tinha atuado como censor. "Cinema não é arte", asseverava enfaticamente em 1938. O cinema era, para ele, em primeiro lugar, um meio: um meio tecnológico e científico que deveria contribuir para a educação e para a elevação do povo brasileiro. A grande maioria dos filmes do INCE seguia um viés erudito, avalia Sheila Schvarzman em seu texto: procurava dar "aos carentes o conhecimento da cultura letrada oficial" e esperava que os expectadores, humildemente, assimilassem as verdades científicas que os fariam avançar na escala do progresso civilizatório. Assim, ainda de acordo com a análise de Schvarzman, os filmes revelavam uma certa "incapacidade de contato com o real" que proviria do pensamento positivista: um pensamento que possibilita, num plano abstrato, a integração dos mais diversos grupos e indivíduos numa mesma comunidade, mas, ao mesmo tempo, justifica um relacionamento assimétrico com todos aqueles identificados como não-civilizados, já que as diferenças detectadas neles eram entendidas como decorrências de um estágio inferior de desenvolvimento cultural.

O tema científico que mais profunda e longamente atraiu a atenção de Roquette-Pinto foi a questão racial, assunto que marcava também, profundamente, os debates da época sobre a imigração, a saúde pública e, portanto, os rumos futuros da jovem nação. É também nesta temática que se concentra provavelmente o maior impacto sociopolítico do pensamento de Roquette-Pinto: os diferentes ensaios que compõem a coletânea, particularmente os de Ricardo Ventura Santos, Giralda Seyferth, Jair de Souza Ramos e Vanderlei Sebastião de Souza, revelam a complexidade e certas ambiguidades e incoerências que se expressam nas ideias de Roquette-Pinto acerca das noções de raça, miscigenação e eugenia.

Todos os autores sublinham a importância do cientista no combate ao determinismo racial e climático, sem que ele tivesse, porém, aberto mão do conceito de raça. Raça constituía uma das categorias mais importantes e mais disseminadas na época, e era usada por cientistas e pelo senso comum para fazer referência a, e para analisar, diferenças humanas. Refletir sobre o valor das raças e as consequências da mestiçagem significava, no caso do Brasil, pensar o passado e, sobretudo, o futuro da nação. No debate acadêmico, opunham-se duas posições extremas: de um lado, havia aqueles (por exemplo, Nina Rodrigues) que, devido à longa prática da miscigenação no país, mostravam-se céticos e pessimistas a respeito do futuro do Brasil. De outro lado, posicionavam-se aqueles (por exemplo, Lacerda) que acreditavam que um determinado tipo de miscigenação pudesse, sim, contribuir para a construção de uma civilização forte nos trópicos: a chave para este processo, que levaria ao ansiado branqueamento da população brasileira, seria o incentivo estatal à imigração de mão-de-obra europeia. Por trás destas posições, articulavam-se não somente diferentes avaliações a respeito da origem causal das diferenciações raciais e do impacto das raças e do processo de miscigenação sobre as vidas humanas. As diversas análises particulares também eram evidentemente permeadas por convicções de ordem política e ideológica, e marcadas por posturas pessoais frente à ciência e à nação.

Os estudos das raças efetuados por Roquette-Pinto, que incluíam a aplicação de métodos antropométricos (por exemplo, os de 1920, quando elaborou um estudo sobre "tipos antropológicos do Brasil"), tinham um nítido objetivo social e político: propiciavam-lhe um conhecimento ao qual podia recorrer nas suas discussões acerca da imigração (especialmente, no caso dos japoneses) e nas suas atividades junto à Liga Pró-Saneamento do Brasil.

Em 1912, ele elaborou um diagrama que, baseado em dados dos primeiros recenseamentos nacionais, projetava a extinção dos negros para o ano de 2012 e, desta forma, fornecia a Lacerda um importante material para a defesa de seu discurso pró-branqueamento. Pouco depois, no entanto, Roquette-Pinto transformar-se-ia num eminente crítico de tais ideias: incorporando um espírito nacionalista, que ganhava força no país na época da Primeira Guerra Mundial, Roquette-Pinto revelou-se, nestas discussões, um árduo defensor das populações locais. Lutava em duas frentes: contra a "ideologia do branqueamento", e contra aquele pensamento racial que criava hierarquias fixas entre grupos humanos e condenava os produtos de cruzamento à - supostamente irreversível - degeneração. Assim, fazia críticas irônicas a letrados estrangeiros, como Agassiz e Gobineau, os quais, após rápidas passagens pelo Brasil, disseminaram tais teses que, de acordo com Roquette-Pinto, seriam erroneamente reproduzidas por certos intelectuais brasileiros, como por exemplo Euclides da Cunha. Roquette-Pinto via nestas ideias uma atitude imperialista que buscava justificar a expansão colonial de países europeus. Argumentava que a mestiçagem em si nada tem a ver com as mazelas do país, e, ao mesmo tempo, opunha-se àqueles que viam na imigração europeia um meio adequado para melhorá-lo: "O problema nacional não é transformar os mestiços em gente branca. O problema é a educação dos que aí se acham, claros e escuros", afirma Roquette-Pinto em 1927; ou ainda em outro contexto: "(...) o homem, no Brasil, precisa ser educado e não substituído".

Diante de tais posicionamentos, o forte envolvimento de Roquette-Pinto com a eugenia pode causar um certo estranhamento. O instigante ensaio de Vanderlei Sebastião de Souza ajuda-nos a entendê-lo melhor. De acordo com o autor, Roquette-Pinto empregava a eugenia como um instrumento modernizador: como uma ferramenta científica tanto para pensar o processo do aperfeiçoamento da raça quanto para defender o homem brasileiro das condenações implicadas no determinismo biológico. Na abertura do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, Roquette-Pinto deixava claro que "as leis da eugenia" deveriam ser aplicadas com o objetivo de "melhorar o patrimônio biológico" dos brasileiros. Assim, a seleção matrimonial deveria seguir os ensinamentos da ciência eugênica. Dever-se-ia incentivar o casamento entre pessoas com "boa herança", independentemente do "tipo racial". Ou seja, a preocupação eugênica do cientista recaía sobre a eliminação de doenças hereditárias localizadas em seres humanos particulares, e não sobre determinadas características raciais ou sobre a "mistura das raças" em si. A mestiçagem é um mal somente "quando realizada ao deus-dará dos infortúnios, sem eira nem beira, sem higiene e sem eugenia, sem educação e sem família", costumava dizer Roquette-Pinto. Num artigo publicado em 1933, o cientista chegou a sugerir a promoção de um concurso para escolher, entre trabalhadores rurais e operários das indústrias, um casal de jovens que apresentasse "os tipos de herança realmente eugênicas, e qualidades pessoais relevantes". Os vencedores deveriam ser premiados por fazendeiros e industriais com um pequeno aumento de salário, já que os casamentos eugênicos trariam, em última instância, lucros aos empregadores.

O fato de Roquette-Pinto ter lutado contra o determinismo biológico não significa, porém, que acreditasse numa "completa igualdade de atributos biológicos", conforme escreve Ventura Santos. E se o "peso do biológico" é, de certo modo, questionado no plano coletivo das raças humanas, Roquette-Pinto insiste, ao mesmo tempo, na necessidade do cuidado para com a "boa herança" no plano dos seres humanos particulares. A maneira como se dava, para ele, a relação entre "boa herança individual" e "boa herança coletiva" não parece bem explicada na argumentação deste pensador. Com o intuito de chamar a atenção dos leitores para as não raras incongruências que se expressavam nas atitudes de muitos daqueles que fervorosamente debatiam o tema da raça, Ventura Santos termina o seu ensaio com uma irônica comparação entre um estudo anatômico promovido pelo "clássico determinista racial" Nina Rodrigues e outro executado pelo combatente do chamado "racismo científico, Roquette-Pinto. Enquanto Nina Rodrigues, na sua análise do crânio de Antonio Conselheiro, não conseguiu detectar nenhuma anormalidade nas características fisiológicas daquele personagem que descrevia como "delirante" e "megalomaníaco", Roquette-Pinto teria descoberto na "complexidade das circunvoluções" cerebrais do autor de Os sertões evidências de sua genialidade.

Raça é um conceito elástico, ensina-nos Giralda Seyferth. Nunca houve consenso em torno da quantidade de raças existentes e em torno daquilo que define este conceito. As diversas contribuições desta coletânea alertam-nos para não partirmos de uma noção a-histórica de raça ou de eugenia. Para entendermos os usos, ambiguidades e "não-coerências" de tais conceitos e ideias, é preciso estudarmos os contextos, os interesses particulares e as convicções político-ideológicas daqueles que contribuíram para a sua construção e transformação.

Ventura Santos explica que, embora Roquette-Pinto tenha defendido "posições igualitárias, contrárias a noções de fatalismo racial", não chegou, contudo, "a propor uma completa desvinculação entre orgânico/racial e mental/social, que veio a se tornar a posição predominante na reflexão antropológica algumas décadas depois". Uma das razões pelas quais o cientista não investiu numa tal separação conceitual pode ter a ver com as suas fortes convicções positivistas e com o seu comprometimento com as causas da nação. Na América do Norte, o antropólogo Franz Boas, frequentemente lembrado pelos autores da coletânea e comparado com o nosso autor, estava, neste mesmo período, preparando o caminho para fazer um corte conceitual rigoroso entre o reino da natureza, de um lado, e o(s) mundo(s) da simbolização, de outro. Começava a se referir à existência de uma pluralidade de culturas - isto é, não mais a um só percurso possível de uma cultura humana única - que Boas valorizaria e analisaria de forma cada vez mais independente das esferas biológicas e geográfico-climáticas. Crítico ao determinismo biológico, tal como Roquette-Pinto, Boas convenceu-se, porém, já muito cedo - diferentemente do nosso autor - de que a diversidade das vivências e experiências humanas não podia ser explicada a partir de leis naturais.

O livro Antropologia brasiliana tem o mérito de situar as ações e ideias de Roquette-Pinto no contexto histórico local e internacional e, sendo assim, traz uma importante contribuição para várias áreas de conhecimento, especialmente para os estudos sobre o chamado pensamento social brasileiro, e será particularmente importante para uma melhor compreensão da tão espinhosa questão racial no Brasil.

Andreas Hofbauer é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília, Brasil (andreas.hofbauer@uol.com.br).
Revista Estudos Históricos