sexta-feira, 28 de julho de 2017

Gênero e Sexualidade, Saberes e Intervenções


Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Alejandra Roca
Universidad de Buenos Aires – Argentina
Jane A. Russo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Brasil
Porto Alegre, ano 23, n. 47, jan./abr. 2017

Preço unitário: R$ 25,00 Comprar aqui

Artigos

VIDA SAUDÁVEL VERSUS VIDA APRIMORADA: TECNOLOGIAS BIOMÉDICAS, PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO E APRIMORAMENTO
Fabíola Rohden

TESTOSTERONA, DESEJO SEXUAL E CONFLITO DE INTERESSE: PERIÓDICOS BIOMÉDICOS COMO ESPAÇOS PRIVILEGIADOS DE EXPANSÃO DO MERCADO DE MEDICAMENTOS
Livi Faro
Jane A. Russo

SOB A PELE: IMPLANTES SUBCUTÂNEOS, HORMÔNIOS E GÊNERO
Daniela Manica
Marina Nucci

OS PERIGOS SUBSUMIDOS NA CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA: MORALIDADES E SABERES EM JOGO
Elaine Reis Brandão
Cristiane da Silva Cabral
Miriam Ventura
Sabrina Pereira Paiva
Luiza Lena Bastos
Naira V. B. Vidal Oliveira
Iolanda Szabo

A FIXAÇÃO E A TRANSITORIEDADE DO GÊNERO MOLECULAR
Lucas Tramontano

ALÉM DO MASCULINO/FEMININO: GÊNERO, SEXUALIDADE, TECNOLOGIA E PERFORMANCE NO ESPORTE SOB PERSPECTIVA CRÍTICA
Wagner Xavier Camargo
Cláudia Samuel Kessler

LAS PARADOJAS DE LA (IN)VISIBILIDAD. TRAYECTORIAS DE VIDA DE LAS PERSONAS TRANSMASCULINAS EN LA ARGENTINA CONTEMPORÁNEA
Mariana Álvarez Broz

A VAGINA PÓS-ORGÂNICA: INTERVENÇÕES E SABERES SOBRE O CORPO FEMININO ACERCA DO “EMBELEZAMENTO ÍNTIMO”
Marcelle Jacinto da Silva
Antonio Cristian Saraiva Paiva
Irlena Maria Malheiros da Costa

GERONTOLOGIA LGBT: VELHICE, GÊNERO, SEXUALIDADE E A CONSTITUIÇÃO DOS “IDOSOS LGBT”
Carlos Eduardo Henning

PRÁTICAS E SENTIDOS DA APRENDIZAGEM NA PROSTITUIÇÃO
Marina França

PENTECOSTAIS, SEXUALIDADE E FAMÍLIA NO CONGRESSO NACIONAL
Maria das Dores Campos Machado

Resenhas

DAWSON, Allan Charles. In light of Africa: globalizing blackness in northeast Brazil
Gabriel Banaggia

GUIMARÃES, Roberta Sampaio. A utopia da Pequena África: projetos urbanísticos, patrimônios e confl itos na Zona Portuária carioca
Frank Andrew Davies

STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico e outros ensaios
Rodrigo Cantos Savelli Gomes

STAGNARO, Adriana A. Ciencia a pulmón: etnografías de laboratorios argentinos de biotecnología
Paula Simone Bolzan Jardim

LAGUARDA RUIZ, Rodrigo. De sur a norte: chilangos gays en Toronto
Rogelio Jiménez Marce

GLOWCZEWSKI, Barbara. Devires totêmicos: cosmopolítica do sonho
Maria Paula Prates

SANTOS, Luciano Cardenes dos. Etnografia sateré-mawé: Sahu-Apé, cultura e turismo
Rosijane Evangelista da Silva

Fonte: Horizontes Antropológicos

SOARES, Luiz Eduardo - Os dois corpos do presidente e outros ensaios


SOARES, Luiz Eduardo. Os dois corpos do presidente e outros ensaios.' Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993, 216p.
José Antonio Giulti fovarel
Professor de Ciência Política
Universidade Federal de Santo Mario

Cultivando como conseqüência o pluralismo epistemológico e dos valores, num clima que liberdade e ascese do trabalho intelectual, o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio Grande do Sul (IUPERJ) tem ocupado merecidamente, nas últimas décadas, uma posição singular na comunidade brasileira das ciências sociais.

O resultado recente dessa antiga trajetória consiste na emergência, no IUPERJ, de uma nova geração de pesquisadores e professores que, conciliando a acuidade, a versatilidade e o rigor intelectual, se têm dedicado à recuperação da teoria política clássica e à exploração da teoria política moderna, na busca de paradigmas universais, com funções heurísticas, predictivas e normativas.

Nos três últimos anos, quatro notáveis teses de doutorado justificaram o investimento do IUPERJ em teoria política.
Luiz Eduardo Soares realizou um esforço heterodoxo buscando substituir a leitura dominante da antropologia materialista, indi vidualista e racionalista de Thomas Hobbes - que nela surpreende a matriz do individualismo metológico, do utilitarismo e da estratégia - por uma leitura antropológico-simbólico, menos preocupada com os dilemas suscitados pela necessidade de emergir do estado de natureza e de constituir uma comunidade política ordenada, estável e predictível, do que com a possibilidade de construção transcendental de um sujeito universalizado capaz de conceber os fundamentos da obrigação política, do dever de obediência à autoridade pública legítima e, dados os limites, do direito à resistência civil. O resultado magnífico desse esforço foi a tese de doutorado de 1991: "A invenção do sujeito universal: Hobbes e a
política como experiência dramática de sentido".
Movimentando-se em direção oposta, Ricardo Lessa empenhou-se em investigar, no ceticismo gregos as implicações decorrentes, para a ação política e para a razão prática da pluralidade tendencialmente ilimitada de versões teóricas possiveis do mundo cósmico e da sociedade. O coroamento dessa investigação foi a tese de doutorado defendida por Renato Lessa em 1992, Vox Sextus: pluralidade dos mundos, estratégias cognitivas e conhecimento ordinário na reflexão política dos modernos.

Também em 1992 foi concluída a tese de doutorado de Luiz Orenstein Jogos da ação coletiva, na qual o autor trata de demonstrar, explorando o paradigma heurístico da teoria dos jogos, que a interação estratégica descrita por múltiplos jogos de soma variável do tipo dilema do prisioneiro viabiliza - desde que estes sejam disputados simultânea e sucessivamente, por um número indeterminado e não conhecido de vezes,e com variações nos ganhos - a cooperação recíproca entre os jogadores e sua conversão em equilibrio estratégico coletivamente estável. Essa possibilidade da qual não estou pessoalmente convencido, permitiria pensar na possibilidade da constituição e do funcionamento permanente da comunidade política com um minimo de Estado ou mesmo, teoricamente, na ausência dele.
Finalmente em 1993, Ricardo Benzaquem de Araújo, já reconhecido pelo sua arguta interpretação do integralismo brasileiro, produziu Casa Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos trinta, tese de doutorado no Museu Nacional.
Enfim, ainda em 1993, a Editora Re\ume Dumará pub\icou o \ivro de Luiz El\uarl\o Soares, Os dbis corpos do presidente e outros ensaios.

Na primeira parte do livro o autor publica textos de teoria política escritos nos últimos doze anos. No primeiro e mais longo desses textos, examina as bases da desobediência legítima à autoridade pública nas teorias de Hobbes, Locke, Rosseau, Hume, John Stuart Mill e Edmund Burke. Nos dois últimos segmentos, expõe a sua versão da estrutura fundamental do argumento contratualista moderno, tal como se encontra no Leviatã, de Thomas Hobbes.
Há ainda, na primeira parte, uma cálida reflexão sobre "o lugar do sofrimento no pensamento político moderno", construída sobre a leitura comparativa, com grande acuidade, dos textol'.
el'.l'.e,nc.iail'. l\e \\Ç)\)\)e.'E., \\ "Rosseau, l\e Kant e de Bentham.
Em suma: na perspectiva de recortes temáticos específicos mas cruciais, Luiz Eduardo Soares descreve, com rigor epistemológico e sensibilidade ética, as interpretações alternativas mais relevantes do fenômeno político - o jusnaturalismo, o contratualismo, o utilitarismo, o idealismo, o historicismo, o voluntarismo institucionalista, e, em particular, a controvérsia, de que participam, acerca dos fundamentos da obrigação política, da ordem pública constiutcional e do Estado.

A segunda parte do livro reúne, além de um artigo sobre as fronteiras disciplinares entre as ciências sociais e de uma análise sobre o conflito entre as religiões populares no Brasil, quatro ensaios de conjuntura nos quais o autor, recorrendo à exploração antropológica da cultura política brasileira, desvela com notável perspicuidade fenomenológica os mecanismos psicológicos fundamentais de produção e acumulação de poder postos em curso pelo governo Conor.
O breve ensaio que intitula o livro, Os dois corpos do presidente, evoca o construto simbólico da teologia política medieval, tema clássico da obra de Ernst Kantorowics, para elucidar, por analogia com aquele construto, o processo de cuidadosa elaboração da imagem do poder presidencial, pela máquina publicitária do governo Conor, no imaginário popular.
Do mesmo modo que Cristo, o rei medie',al possuía dois corpos: um corpo físico, natural, pessoal e privado, submetido à fragilidade e à falibilidade inerentes à humanidade comum, e um corpo oral, suprapessoal e intangível que, por outro lado, personificando a esfera pública da sociedade, distinguia-se pela imortalidade e pela infalibilidade, dele derivando a autoridade e o poder do monarca. No caso Collor, o corpo místico personificava certamente a vontade virtual da população, revela pela eleição plebiscitária que consagra o Presidente.
Há, entretanto, uma diferença fundamental que atravessa a analogia e que a excelente análise de Luiz Eduardo Soares deveria ter assinalado.
Registro-a, como modesta contribuição pessoal, ao concluir a presente resenha.
A concepção. cristã medieval da monarquia distinguia nitidamente os dois corpos do rei, estatuindo ao mesmo tempo a incontrastabilidade do corpo público, moral e constitucional, e a responsabilidade comum do corpo privado, prevendo mecanismos capazes de impedir que a lógica segundo a qual se movimentava o corpo privado contaminasse a decisão e a ação do corpo moral do monarca.

Na deificação, cultivada pela mídia, do voluntarismo autocrático arrogante e da onipotência da vontade do presidente playboy, o corpo moral e a autoridade suprapessoal da Presidência, que pairavam acima do bem e do mal, foram edificados como resultado da composição e da transfiguração dos atributos que modelavam o corpo privado daquele, envolvendo condutas que
iam da psicanálise à patologia social: imaturidade, temeridade, destrutividade, no limite autodestrutividade, desrespeito à propriedade, aos direitos e à vida dos outros.

Rigorosamente, na lógica perversa da construção simbólica de poder pelo governo Collor, o corpo privado do adolescente mimado e viciado, no qual conviviam vigor atlético e raquitismo intelectual e moral, e do oligarca primitivo, que se substituiu à lei e às instituições, ocupou o lugar que deveria ter cabido à autoridade institucional e suprapessoal da Presidência. E, em seu conjunto, esse mecanismo passou a ser concebido como a modernização do Estado.

Fonte: Revista Horizontes Antropológicos

Vida e Palavras: Violência e Descida no Ordinário


Pedro Paulo Gomes Pereira
Antropólogo, Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. pedropaulopereira@hotmail.com

A antropologia e a teoria feminista têm como espaço privilegiado de reflexão a intersecção gênero, violência e subjetividade. Algumas abordagens nessa intersecção acabam por pensar violência como algo apenas eventual, olvidando-se frequentemente de assinalar suas íntimas conexões com o cotidiano. É comum também, e consubstancial a essa visão de violência como extra-ordinário, pensar o campo que envolve a violência em oposições rígidas, tais como: vítima e agressor, agência e opressão – existindo mesmo uma habitual associação entre agência e transgressão, como se a voz das vítimas só pudesse se manifestar transgredindo e enfrentado a Lei. Dessa maneira, como algo esporádico e fortuito, que se irrompe aqui ou acolá, a violência não desce ao cotidiano, e o trabalho diário na lida contra a violência é obnubilado em favor de certo tipo de violência acidental e de certo tipo heróico de resistência. É à busca de pensar as relações entre gênero, violência e subjetividade para além da oposição ordinário e extra-ordinário, evitando as ciladas dessa oposição, que a antropóloga indiana Veena Das vem se dedicando na última década e, como fruto dessa inquietação, publicou o livro Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary.

Veena Das iniciou suas investigações em Gujarat, um Estado da Índia que faz fronteira com o Paquistão. Encontrou ali famílias que haviam imigrado à Índia refugiadas de diversas regiões do Punyab – famílias que por décadas compartilharam com a antropóloga suas memórias e seus testemunhos da violência da Partição (divisão territorial efetuada pela Índia e Paquistão em 1947, pouco tempo após suas independências político-administrativas do império britânico). Esse "evento crítico" caracterizou-se pela violência entre mulçumanos, hindus, sikh e diversos grupos étnicos e religiosos que acabou por desalojar 14 milhões de pessoas e vitimar pelo menos um milhão. Uma das histórias recorrentes na Partição foi o rapto e a violação das mulheres. Das efetuou uma paciente aproximação etnográfica, na qual os relatos de violação, as reestruturações familiares, os testemunhos de violência se encontravam também com uma memória que, simultaneamente, se silenciava sobre o acontecido e se manifestava nas relações sociais, transformando as relações de parentesco. Uma década após, em 1984, Das se deparou com a violência contra os Sikh em Delhi, quando do assassinato de Indira Gandhi, então Primeira-Ministra da Índia. Às memórias dos eventos violentos de 1947, presentes mesmo que sob forma de um "conhecimento venenoso", somavam-se violências súbitas, dirigidas contra os Sikh, organizadas com a conivência do Estado, mas praticada por grupos ilegais, geralmente em forma de motins.

Das vem pesquisando esse contexto desde o início da década de setenta – como se pode acompanhar pelos seus trabalhos (1990, 2003, 2005), alguns já resenhados e relativamente conhecidos no Brasil (Das, 1995; Peirano, 1997). A busca geral da antropóloga é verificar como se estabelecem as relações sociais nesses eventos críticos (1995), de que forma o gênero é acionado como uma gramática que autoriza a violência (2007), qual o papel desempenhado pelo Estado (Das e Poole, 2004), qual o status das vítimas e sua capacidade de resistência, em que condições ocorrem os testemunhos e o que podem revelar (1995; 2007), entre outros. Life and Words persiste nessas indagações, propondo, no entanto, um novo e importante foco: averiguar como a violência desce ao cotidiano.

No prefácio ao livro, Stanley Cavell (2007:ix-xiv) sustenta que Das dialoga com Wittgenstein ao fazer sua análise girar em torno da dor. De fato, o diálogo existe e Life and Words é uma contribuição significativa aos estudos de violência, sofrimento e dor. Das utiliza o conceito de Wittgenstein de "formas de vida" para averiguar como a violência expõe os limites dos critérios de vida e se apresenta como fracasso da gramática cultural no estabelecimento e interpretação de formas de vida. Mas a importância desse livro – aquilo que a autora avança e acentua se comparado a seus trabalhos anteriores – reside, vale insistir, no lugar privilegiado atribuído ao cotidiano. Opção que enseja diversas indagações: de que forma esses eventos violentos, que se irrompem na vida social, descem ao dia-a-dia? que tipos de personagens atuam nessa descida? como agem? em quais gramáticas atuam e sob quais jogos? como operam os rumores? como as mulheres, que surgem como os principais atores desse processo, reconstroem o cotidiano como forma de resistir à violência?

O livro é dividido em duas partes. A primeira (capítulos 2 ao 5) aborda a Partição da Índia, em 1947, e os processos pelos quais a violência desse evento crítico é construída no dia-a-dia da Índia contemporânea. Nessa parte, tendo como interlocutores as vítimas da Partição, Das demonstra que os sujeitos enfrentam essa violência não com um acento excessivo numa memória paralisada, mas como forma de reabitar o cotidiano. Na segunda parte (capítulos 7 ao 11), Das reflete sobre a violência coletiva que se seguiu ao assassinato de Indira Gandhi, caracterizada pelos motins anti-Sikh. A abordagem se centra numa política de afetos que se transforma em atos de violência e conforma "comunidades de ressentimento".

Nas análises sobre a Partição, uma das questões principais abordadas pela autora é o rapto e a violação das mulheres. Durante a Partição, os Estados da Índia e do Paquistão adotaram normas que vinculavam a castidade da mulher à dignidade da nação. O corpo da mulher se transformou, então, num signo de comunicação entre homens, uma violenta linguagem da masculinidade. As mulheres violadas pelos raptores eram ora assassinadas, ora se suicidavam como condição de reentrar "honradas" na imaginação da nação; as sobreviventes eram marginalizadas e enfrentavam contínuas e árduas dificuldades para refazerem suas vidas. Segundo a autora, as mulheres raptadas circulavam nos debates políticos e permitiam ao Estado estabelecer um estado de exceção que sinalizava uma alteração do fluxo na troca de mulheres. Esse acontecimento permitiu um "contrato social" entre homens, fundamentado num "contrato sexual", que reivindicava os direitos dos homens sobre as mulheres. A violência infligida às mulheres não se referia apenas ao silenciamento de suas vozes, mas à transformação das mulheres em testemunhas da violência brutal, testemunhas silenciadas, mas que tinham em seus corpos os signos da violência – corpos apropriados numa disputa pela soberania que operava por uma gramática violenta de gênero.

Essas mulheres, cujos corpos são signos dessa gramática violenta de gênero, expressavam-se numa zona de silêncio. Das utiliza a metáfora de "conhecimento venenoso" para falar como as mulheres atuam sobre o sofrimento a elas infligindo. Quando conversava com as mulheres raptadas e violadas durante a Partição, indagando sobre suas experiências, Das percebeu uma zona de silêncio, principalmente sobre os fatos mais brutais. Surgia ali uma linguagem metafórica que se valia de figuras de linguagem para escapar de narrar diretamente a violação. As mulheres utilizavam a metáfora de uma mulher que bebia veneno e o mantinha dentro de si. Esse conhecimento manifestava-se no cotidiano e nas formas de perceber a vida, construindo um mapa das relações sociais, permitindo-lhes operar as experiências violentas no cotidiano, na reconstrução do dia-a-dia. Testemunhas silenciosas atuam – valendo-se do "trabalho do tempo" – sobre os relacionamentos familiares, num processo contínuo de reescrita. As mulheres parecem se valer de um tipo específico de compreensão: o tempo também possui agência, e trabalha. Saber lidar com o tempo significa atuar diretamente na reconstrução das relações e permite reabitar o mundo. O trabalho do tempo possibilita colocar essas mulheres na condição de sujeitos, no processo de reconstrução de suas relações familiares.

Para falar sobre o "trabalho do tempo", Das descreve a história de Manjit, uma das mulheres raptadas durante a Partição e resgatada pelo exército indiano. A narrativa acompanha Manjit do arranjo apressado de seu casamento (devido aos tumultos da Partição e seus efeitos nas famílias), à violência rotineira desferida por seu marido contra ela e, posteriormente, contra o primogênito do casal; aproxima-se das complexas negociações do casamento do filho de Manjit e mostra o deslocamento da violência de seu marido para a jovem esposa; assinala como essa violência faz com que se contrariem todas as convenções culturais, forçando o primogênito e sua esposa a se mudarem de casa; e finaliza retratando o esposo de Manjit adoecido e necessitando de cuidados, o filho de Manjit retornando à sua casa, onde a protagonista da narrativa consegue finalmente tranqüilidade para viver ao lado de seus netos. A história, muito mais rica do que pude descrever, conta-nos como o tempo não é algo simplesmente representado, mas um agente que trabalha nas relações, permitindo que sejam reinterpretadas e rescritas no embate dos agentes na construção de suas histórias.

Semelhanças entre essa poderosa história e O vento, filme de Victor Sjöström (1928), poderiam ser traçadas. No filme, uma jovem sulista vai ao Texas para se casar, mas é violentada no trem por um desconhecido. A jovem, entretanto, mata o agressor e enlouquece, em meio à tempestade de areia provocada pelo vento incessante. Embora ambos abordem a violência de gênero, a trama da narrativa é diferente: Manjit não enlouquece como a jovem Letty do filme, e sabe utilizar o trabalho do tempo a seu favor. Contudo, nas duas narrativas temos a forte presença de outros protagonistas: na obra de Sjöström, o vento; no texto de Das, o tempo – ambos são agentes que aparecem como personagens principais da história.

O trabalho do tempo também se manifesta nas relações entre a Partição e os eventos que se sucederam após 1984 (a invasão do Templo Dourado de Amritsar, o assassinato de Indira Gandhi por seus guardas Sikh, a violência contra os Sikh). A localização e a atualização da violência contra os Sikh devem ser compreendidas como uma mescla de memórias dos sobreviventes da Partição, de uma gramática de gênero violenta – caracterizada por uma masculinidade que auto-proclama sua superioridade sobre um outro-inferior-feminino ou feminilizado –, de um Estado conivente e, de certa forma, fomentador da violência. As relações do cotidiano processam sentimentos de raiva e ódio e permitem, ao mesmo tempo, um trabalho de reconstrução da sociabilidade, mas também possibilitam o incremento desses sentimentos de ódio que podem ser traduzidos em atos de violência, como o assassinato dos Sikh.

O passado tem um caráter indeterminado. O presente se converte no lugar onde elementos do passado que foram rejeitados podem assediar o mundo. O acontecimento sobrevive em versões diversas dentro da memória social dos diferentes grupos sociais. Das sustenta, então, que o rumor ocupa uma região da linguagem que pode fazer experimentar acontecimentos e, mais do que se apresentar como um ato externo, termina por produzir no mesmo ato em que enuncia. Os processos de tradução e rotação funcionam para atualizar certas regiões do passado e criam um sentido de continuidade entre os acontecimentos, conectando-os entre si. No caso dos acontecimentos pós-assassinato de Indira Gandhi, Das assinala como diversas correntes de rumores se combinaram para criar uma sensação de vulnerabilidade entre os hindus e fazer supor que os Sikh seriam desprovidos de subjetividade humana. O rumor acabou por fazer os hindus se pensarem como uma coletividade instável e em perigo – o que autorizou a violência contra o outro desprovido de subjetividade.

O rumor ressalta a dimensão do impessoal na vida social. Os rumores exercem um "campo de força" que atrai as pessoas para agirem de determinada maneira. Trata-se, portanto, de um tipo de violência que nubla as distinções claras entre agressores e vítimas. A impessoalidade e esse campo de forças propiciam atos morais que não seriam executados em condições diferentes, e pessoas comuns são arrastadas para cometer atrocidades (Das, 2010). O rumor, enfim, embaralha e complexifica as categorias convencionais que temos para pensar a violência e se constitui num modelo para complexificarmos as definições de agência. A força perlocucionária do rumor mostra a fragilidade do mundo, e como as imagens de desconfiança, que podem ser apenas virtuais, tomam uma forma volátil, e a ordem social se vê ameaçada por um acontecimento crítico.

A análise do rumor, além de focalizar o poder do impessoal (Das 2010:137), apresenta também a agência de determinados atores que não se encaixam naquilo que geralmente se imagina como "agência". Por exemplo, noções como paciência e paixão são mais vinculadas à passividade do que à resistência. A descida ao cotidiano, entretanto, abala nossos modelos pré-estabelecidos de resistência ou, pelo menos, apresenta outras possibilidades de pensá-los. Das encontra uma forma de lidar com a violência que se distancia dos modelos de resistência heróica, tal como os percebidos no modelo clássico de Antígona. A antropóloga indiana conta, então, a história de Asha, uma mulher punjab, que vivia com a família de seu esposo na fronteira do Paquistão no período da Partição. Depois do conflito, teve que abandonar sua "família política" por diversos motivos relacionados à sua condição de mulher e de viúva. Ela se casa com um comerciante bem estabelecido. Depois de muito tempo e de uma insistente ação de Asha e de sua cunhada, termina por reatar os laços com sua família política. Das contrasta as ações de Asha às de Antígona. Para a antropóloga, se a figura de Antígona oferecia uma maneira de pensarmos voz e agência, a figura de Asha mostra um sujeito genereficado que possui um "conhecimento venenoso", mas que constrói um trabalho cotidiano de reparação. Diferentemente de Antígona, a agência não está no heróico e no extra-ordinário, mas na descida ao cotidiano, no preparo diário da alimentação, na arrumação e organização dos afazeres, no cuidado e cultivo persistente das relações familiares. São essas ações cotidianas que possibilitam a criação de um discurso de reparação. Ao justapor o modo "menos dramático" de discurso utilizado por Asha ao discurso de Antígona, Das sugere que mulheres como Asha ocuparam uma zona diferente ao descer ao cotidiano em lugar de ascender a um "plano superior" (Das, 2007; 2010). Se nos dois casos percebemos mulheres como testemunhas – no sentido de se encontrarem no marco dos acontecimentos e de serem por eles afetadas –, Asha fala da zona do cotidiano, ocupando os signos das feridas que a afetaram e estabelecendo uma continuidade no espaço da devastação.

Estes breves comentários nem de longe dão conta da argúcia dos argumentos, da riqueza das histórias descritas e do impecável estilo de Veena Das. Tentei apenas desenhar em traços largos os movimentos principais da obra. E, para finalizar, com objetivo apenas de ressaltar alguns aspectos, faço algumas considerações mais gerais sobre Life and Words.

Bronislaw Malinowski (1935) revelou em suas "confissões de ignorância e falha", no apêndice de Coral Gardens and Their Magic, que uma fonte geral da inadequação de seu material consiste no fato ter sido seduzido pelo dramático e excepcional e ter negligenciado o dia-a-dia (ver Martin, 2007). Porém, acompanhar o dia-a-dia de nossos interlocutores demanda tempo e uma pesquisa de campo prolongada (nem sempre possível, se pensarmos, por exemplo, na realidade brasileira). Sem uma interação cuidadosa, por anos a fio, muito do cotidiano se perde e o antropólogo acaba seduzido pelo "dramático e excepcional". Se isso vale mesmo para antropólogos que tiveram a oportunidade de ficar por muito tempo em campo, como Malinowski, há que se conjecturar as dificuldades de, em períodos curtos, se conseguir uma aproximação razoável às práticas cotidianas. Life and Words é interessante para refletirmos sobre o assunto. Ao analisar o trabalho de restabelecimento da sociabilidade após experiências de ruptura proporcionadas pela violência, assinala Das a persistência de zonas de silêncio nas quais a emergência da voz feminina se dava nem sempre pelo dizer, mas pelo mostrar. O mostrar não é algo que surge apenas de narrativas ou de reivindicações, mas no fabrico diário de modos de viver. Donde a necessidade de uma laboriosa prática etnográfica que se volte para o dia-a-dia. Das parece sugerir que somente um trabalho de campo que saiba manejar o "trabalho do tempo" conseguirá ouvir o que se tem a dizer, perceber os dizeres do silêncio e compreender o que os interlocutores desejam mostrar. Afinal, é a intensidade e persistência na investigação que possibilitam um vínculo com os interlocutores.

Todavia, não é estranha à história da antropologia a figura do "nativo" convertido simplesmente num vetor de informações (o informante), destituído de nome e sem traços que o singularize. A despeito desse movimento, e justamente pela intensidade do empreendimento etnográfico que, em maior ou menor grau, propicia vínculos com os interlocutores, alguns nomes ficaram marcados: Ahuia de Malinowski, Tuhami de Crapanzano, Ogotemmeli de Griaule, Muchona de Victor Turner, Pa Fenuatara de Raymond Firth, Adamu Jenitongo de Stoller. Das nos apresenta outros personagens. No decorrer do livro, a antropóloga se envolve e é interpelada pelos seus interlocutores, enredando-se no drama de suas vidas, estabelecendo vínculos que, em alguns casos, perduram por décadas. Certamente as mulheres desses eventos críticos narrados por Das, como Manjit e Asha, ficarão na história da disciplina. Ademais, a antropóloga lhes confere um lugar privilegiado, reivindicando uma equiparação às heroínas das tragédias gregas: Asha é igualada à não menos que Antígona.

Em Life and Words, as protagonistas são os interlocutoras da antropóloga, que não apenas narram suas histórias, mas formulam sofisticadas teorias sobre tempo, dor, sofrimento, adoecer; teorias sobre formas de relação. A antropóloga procura alçar a teoria de seus interlocutores ou, para falar em termos mais filosóficos, alçar suas práticas de conhecimento. O que não significa um abandono das discussões teóricas e dos conceitos antropológicos; antes, trata-se de intensificar as conexões entre os saberes. Daí, por exemplo, o intenso diálogo estabelecido com Wittgenstein (cf. Das, 1998) – diálogo ancorado numa longa experiência etnográfica, e numa lida cuidadosa com as teorias, sejam elas de mulheres punjab ou de filósofos austríacos. Apesar desse cuidado, teço duas pequenas observações.

1) Das lembra que a relação da formação do sujeito e a experiência de subjugação foi compreendida por Foucault, em sua análise da disciplina do corpo, por intermédio da metáfora da prisão: "a alma é a prisão do corpo". Entretanto, ressalta a antropóloga, ao tentar compreender as complexas conexões existentes entre violência e relações de parentesco, percebeu que os modelos de poder-resistência ou a metáfora da prisão são excessivamente grosseiros como ferramentas para entender o "delicado trabalho de criação do sujeito" (2007:78). Pelo contrário, continua a autora, ao explorar a profundidade temporal propiciada pelos momentos originários de violência, e o caráter fundamental da vida cotidiana, em vez de utilizarmos metáforas de prisão para significar as relações entre critérios externos e estados internos (corpo e alma), devemos pensar que eles se recobrem um ao outro, compreendidos sempre em união. A ressalva que faço – reconhecendo, evidentemente, a importância do achado etnográfico de Das – é que o autor de Vigiar e Punir é também autor de História da Sexualidade, e as exegeses da obra de Foucault vêm revelando em sua trajetória uma complexificação crescente do enfoque sobre a formação do sujeito e da subjetivação (ver Goldman, 1999). Qualquer análise que se concentre apenas na abordagem de Vigiar e Punir será necessariamente parcial, não alcançado a complexidade da abordagem de Foucault. Judith Butler (1997), por exemplo, em sua obra sobre a vida psíquica do poder (ou seja, sobre as relações entre "sujeição" e "tornar-se sujeito"), revela um Foucault atento às sutilezas daquilo que Das denominou de "delicado trabalho de criação do sujeito". A busca de compreender as práticas de conhecimento de nossos interlocutores não nos autoriza a simplificar as teorias que manejamos, quaisquer que sejam, e mesmo sob a justificativa de priorizar o conhecimento nativo. Ainda que se argumente que a utilização de Foucault em Das foi pontual, há que se indagar sobre o porquê de tal uso, já que o autor poderia atuar positivamente no desenvolvimento da autora e não apenas como algo tosco ("crude") a ser evitado.

2) Outra questão que me intriga na composição geral de Life and Words é que a autora, talvez pela inércia constitutiva da linguagem, parece demasiadamente colada aos significantes "homem" e "mulher" na sua concepção de gênero. Das está refletindo sobre um quadro em que a gramática de gênero parece girar quase exclusivamente em torno da heterossexualidade. Mas, ainda assim, sinto a falta de uma maior problematização sobre a concepção de gênero e da violência da própria gramática cultural heteronormativa. Quando Butler (1990) redefiniu gênero como performance, interrogou-se sobre a produção e reprodução do sistema sexo/gênero normativo e binário, concluindo que, da mesma maneira que sexo e sexualidade não são a expressão de si ou de uma identidade, mas o efeito do discurso sobre o sexo – um dispositivo disciplinar, portanto –, o gênero também não é uma expressão do sexo. Se a feminilidade não deve ser necessária e naturalmente a construção cultural de um corpo feminino; se a masculinidade não deve ser necessária e naturalmente a construção cultural do corpo masculino; se a masculinidade não é colada aos homens e se não é privilégio dos homens biologicamente definidos; é porque o sexo não limita o gênero, e o gênero pode exceder os limites do binarismo sexo feminino/sexo masculino. Todo gênero é uma performance de gênero, ou seja, uma paródia sem original. Sem querer me estender nessa questão, cabe aqui uma indagação sobre a pressuposição de gênero nos marcos estritamente heterossexuais ou numa gramática em torno de significantes hetero e também de uma possível homogeneização das mulheres que acabaria por criar um universalismo mascarado. Sobre esse último ponto, quem sabe não seja mais interessante perceber as mulheres não como um grupo explorado, mas uma coalizão política a construir, e que não se define unicamente pelo gênero ou pela opressão de gênero – posição esta, inclusive, que se aproxima ao próprio movimento teórico empreendido por Das. Essa questão precisa ser mais bem observada. De qualquer forma, um diálogo mais intenso com teóricas como Judith Butler, Teresa de Lauretis e Marilyn Strathern numa discussão conceitual da categoria gênero, poderá ser frutífero para futuros trabalhos de Veena Das.

Independentemente dessas observações, Life and Words consegue, de forma convincente, abordar a intersecção gênero, violência e subjetividade, demonstrando que a vida cotidiana é, para repetir Stanley Cavell, ao mesmo tempo, uma busca e uma pesquisa [a quest and an inquest]. Veena Das destaca, com persistência e delicadeza, os ensinamentos do poeta Rainer Maria Rilke ao aprendiz Franz Kappus, em famosa missiva que acabou por ser publicada em Cartas a um jovem poeta: "Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas".

Referências bibliográficas

Butler, Judith. The psychic life of power: theories in subjection. California, Stanford University Press, 1997.
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* Resenha do livro Das, Veena. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007, 281p. Recebida para publicação em agosto de 2010, aceita em setembro de 2010.

Fonte: Resenhas Brasil

Antropologia Brasiliana


Roquette-Pinto: uma vida dedicada ao progresso da nação

Andreas Hofbauer

Antropologia brasiliana.
Ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto
Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá (orgs.)
Belo Horizonte: UFMG, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008, 327p.

Roquette-Pinto não é uma personagem desconhecida: sobretudo para aqueles que estudam a história da ciência e para quem se interessa pelos primórdios do desenvolvimento do rádio e do cinema no Brasil, Roquette-Pinto era um homem de muitos talentos e de muitos projetos. Executou múltiplas atividades profissionais, muitas vezes paralelamente, e ocupou vários cargos importantes durante a sua vida. Criativo, inventivo, com fortes convicções morais e políticas, envolveu-se nas mais diversas questões que preocupavam a intelectualidade brasileira da primeira metade do século XX: pesquisava, opinava e intervinha. Por toda esta trajetória, não deixa de ser curioso que existam relativamente poucos estudos sobre Roquette-Pinto e nenhuma biografia completa a seu respeito.

Neste sentido, o livro Antropologia brasiliana. Ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto, organizado por Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá, veio para suprir uma enorme lacuna. As organizadoras optaram por não seguir uma exposição cronológica das atividades deste grande intelectual, mas escolheram tópicos que julgaram centrais na diversificada produção de Roquette-Pinto e convidaram especialistas para analisar suas contribuições para cada uma das temáticas específicas. Os ensaios foram agrupados em quatro seções, incitando o/a leitor/a a aprofundar o diálogo entre elas: "perfil e trajetória", "positivismo e nação", "antropologia e população", "ciência e ação". Na primeira parte, foi incluído ainda um texto inédito do próprio Roquette-Pinto ("Ciência e cientistas do Brasil", 1939), elaborado para uma conferência proferida no Palácio do Itamaraty. Nesse texto, Roquette-Pinto não somente expõe a sua maneira de ver a história da ciência no país, mas também avalia o papel e o lugar que ele próprio atribui a si mesmo neste processo. O manuscrito, que foi encontrado pelas organizadoras durante a sua pesquisa no acervo pessoal do intelectual (que se encontra hoje sob a guarda da Academia Brasileira de Letras), completa o quadro dos textos.

Desta forma, o livro se revela um mosaico de abordagens sobre a vida de Roquette-Pinto: oferece leituras sobre uma mesma personagem partindo da análise de um tema específico. O resultado são reflexões que, inevitavelmente, em diversos momentos, se cruzam com, e até se sobrepõem a, abordagens que têm outra área de atuação de Roquette-Pinto como foco de análise. Este efeito intencionado pelas organizadoras, que procura espelhar a vida multifacetada do cientista, ganha reforço visual na bela capa montada por Jayme Moraes Aranha Filho, que construiu um retrato do homenageado a partir de um arranjo de centenas de imagens coloridas, que apresentam, na sua maioria, aparelhos de época voltados para a comunicação: microfones, máquinas de escrever, vitrolas, rádios etc.

Os vários textos que compõem a coletânea elucidam que não é possível entender a vida de Roquette-Pinto sem levar em consideração o seu espírito nacionalista e a sua forte crença na ciência, além do espírito positivista que compartilhava com tantos outros pensadores da época. "Creio nas leis da Sociologia positiva e por isso creio no advento do Proletariado, conforme foi definido por Augusto Comte...", afirma o nosso pensador em 1935. Roquette-Pinto era um daqueles intelectuais que apostavam no progresso por meio do aprofundamento do conhecimento científico e de sua disseminação pela educação popular. Ele via nas invenções tecnológicas um potente meio de transformação da sociedade. Acreditava firmemente na força missionária e na função utilitária da ciência, atribuindo-lhe a capacidade de dar respostas para o problema da nação e de preparar o caminho para a modernização. Ao mesmo tempo, o envolvimento pessoal com questões sociais não permitia que Roquette-Pinto se transformasse numa pessoa dogmática. Prevalecia, portanto, um perfil que as organizadoras do livro chamaram de "humanismo científico".

As distintas contribuições valorosas do livro destacam a importância da participação de Roquette-Pinto na expedição Rondon, em 1912. O contato direto com o sertão levaria o jovem cientista, formado em medicina, a rever a visão do admirado Euclides da Cunha a respeito dos males do sertanejo, que Roquette-Pinto qualificaria, posteriormente (em Seixos rolados, 1927), de ilusória: de acordo com ele, os sertanejos não deveriam ser percebidos como seres inferiores, nem como incapazes, como avaliava Euclides, mas tão-somente como atrasados e ignorantes; nem o isolamento, nem as influências da mestiçagem, e sim muito mais o abandono do poder público explicaria a vida precária nos interiores do Brasil. Ponto alto da viagem foi o encontro com os índios Nambikwara. Fazendo uso do seu talento etnográfico, Roquette-Pinto produziu importantes registros e documentos: confeccionou uma das primeiras imagens cinematográficas dos índios e transcreveu músicas indígenas que inspirariam Villa-Lobos. O seu caderno de campo, que seria publicado sob o título Rondonia: anthropologia - ethnographia (1916), expressa a simpatia que sentia em relação aos indígenas; ao mesmo tempo, não esconde o seu ideário positivista-evolucionista, que fazia com que julgasse, por exemplo, a cerâmica indígena "rudimentar" e "grosseira", e a sua plumária "insignificante".

Como diretor do Museu Nacional (1926-1935), preocupava-se em desenvolver estratégias e meios que possibilitassem à população ter acesso ao desenvolvimento científico. Buscava transformar a instituição num museu pedagógico-educativo, numa "universidade do povo", segundo as suas próprias palavras. Para isto, lá instalou, inclusive, um auditório especial e incentivou escolas a frequentar o local. Com a fundação da Revista Nacional de Educação (1932), voltada para a educação e para a divulgação da ciência, das letras e da arte, e que seria distribuída gratuitamente, Roquette-Pinto realizou um sonho pessoal que, porém, duraria apenas dois anos.

Roquette-Pinto foi fundador da primeira emissora de rádio no Brasil, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro (1923), e também o primeiro diretor da instituição. Seu envolvimento com os "novos meios de comunicação" - rádio e cinema -, que via surgir e ajudava a consolidar, foi impulsionado pelas mesmas preocupações e convicções do cientista. O objetivo principal era criar programas de rádio e produzir filmes que apresentassem, de forma didática, os avanços da pesquisa científica e os progressos tecnológicos. Roquette-Pinto dirigiu alguns filmes e participou da feitura de roteiros de outros. Teve grande influência sobre a produção cinematográfica no período de 1936 a 1947, durante o qual ocupou o cargo de diretor do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Um pouco antes (de 1932 a 1934) tinha atuado como censor. "Cinema não é arte", asseverava enfaticamente em 1938. O cinema era, para ele, em primeiro lugar, um meio: um meio tecnológico e científico que deveria contribuir para a educação e para a elevação do povo brasileiro. A grande maioria dos filmes do INCE seguia um viés erudito, avalia Sheila Schvarzman em seu texto: procurava dar "aos carentes o conhecimento da cultura letrada oficial" e esperava que os expectadores, humildemente, assimilassem as verdades científicas que os fariam avançar na escala do progresso civilizatório. Assim, ainda de acordo com a análise de Schvarzman, os filmes revelavam uma certa "incapacidade de contato com o real" que proviria do pensamento positivista: um pensamento que possibilita, num plano abstrato, a integração dos mais diversos grupos e indivíduos numa mesma comunidade, mas, ao mesmo tempo, justifica um relacionamento assimétrico com todos aqueles identificados como não-civilizados, já que as diferenças detectadas neles eram entendidas como decorrências de um estágio inferior de desenvolvimento cultural.

O tema científico que mais profunda e longamente atraiu a atenção de Roquette-Pinto foi a questão racial, assunto que marcava também, profundamente, os debates da época sobre a imigração, a saúde pública e, portanto, os rumos futuros da jovem nação. É também nesta temática que se concentra provavelmente o maior impacto sociopolítico do pensamento de Roquette-Pinto: os diferentes ensaios que compõem a coletânea, particularmente os de Ricardo Ventura Santos, Giralda Seyferth, Jair de Souza Ramos e Vanderlei Sebastião de Souza, revelam a complexidade e certas ambiguidades e incoerências que se expressam nas ideias de Roquette-Pinto acerca das noções de raça, miscigenação e eugenia.

Todos os autores sublinham a importância do cientista no combate ao determinismo racial e climático, sem que ele tivesse, porém, aberto mão do conceito de raça. Raça constituía uma das categorias mais importantes e mais disseminadas na época, e era usada por cientistas e pelo senso comum para fazer referência a, e para analisar, diferenças humanas. Refletir sobre o valor das raças e as consequências da mestiçagem significava, no caso do Brasil, pensar o passado e, sobretudo, o futuro da nação. No debate acadêmico, opunham-se duas posições extremas: de um lado, havia aqueles (por exemplo, Nina Rodrigues) que, devido à longa prática da miscigenação no país, mostravam-se céticos e pessimistas a respeito do futuro do Brasil. De outro lado, posicionavam-se aqueles (por exemplo, Lacerda) que acreditavam que um determinado tipo de miscigenação pudesse, sim, contribuir para a construção de uma civilização forte nos trópicos: a chave para este processo, que levaria ao ansiado branqueamento da população brasileira, seria o incentivo estatal à imigração de mão-de-obra europeia. Por trás destas posições, articulavam-se não somente diferentes avaliações a respeito da origem causal das diferenciações raciais e do impacto das raças e do processo de miscigenação sobre as vidas humanas. As diversas análises particulares também eram evidentemente permeadas por convicções de ordem política e ideológica, e marcadas por posturas pessoais frente à ciência e à nação.

Os estudos das raças efetuados por Roquette-Pinto, que incluíam a aplicação de métodos antropométricos (por exemplo, os de 1920, quando elaborou um estudo sobre "tipos antropológicos do Brasil"), tinham um nítido objetivo social e político: propiciavam-lhe um conhecimento ao qual podia recorrer nas suas discussões acerca da imigração (especialmente, no caso dos japoneses) e nas suas atividades junto à Liga Pró-Saneamento do Brasil.

Em 1912, ele elaborou um diagrama que, baseado em dados dos primeiros recenseamentos nacionais, projetava a extinção dos negros para o ano de 2012 e, desta forma, fornecia a Lacerda um importante material para a defesa de seu discurso pró-branqueamento. Pouco depois, no entanto, Roquette-Pinto transformar-se-ia num eminente crítico de tais ideias: incorporando um espírito nacionalista, que ganhava força no país na época da Primeira Guerra Mundial, Roquette-Pinto revelou-se, nestas discussões, um árduo defensor das populações locais. Lutava em duas frentes: contra a "ideologia do branqueamento", e contra aquele pensamento racial que criava hierarquias fixas entre grupos humanos e condenava os produtos de cruzamento à - supostamente irreversível - degeneração. Assim, fazia críticas irônicas a letrados estrangeiros, como Agassiz e Gobineau, os quais, após rápidas passagens pelo Brasil, disseminaram tais teses que, de acordo com Roquette-Pinto, seriam erroneamente reproduzidas por certos intelectuais brasileiros, como por exemplo Euclides da Cunha. Roquette-Pinto via nestas ideias uma atitude imperialista que buscava justificar a expansão colonial de países europeus. Argumentava que a mestiçagem em si nada tem a ver com as mazelas do país, e, ao mesmo tempo, opunha-se àqueles que viam na imigração europeia um meio adequado para melhorá-lo: "O problema nacional não é transformar os mestiços em gente branca. O problema é a educação dos que aí se acham, claros e escuros", afirma Roquette-Pinto em 1927; ou ainda em outro contexto: "(...) o homem, no Brasil, precisa ser educado e não substituído".

Diante de tais posicionamentos, o forte envolvimento de Roquette-Pinto com a eugenia pode causar um certo estranhamento. O instigante ensaio de Vanderlei Sebastião de Souza ajuda-nos a entendê-lo melhor. De acordo com o autor, Roquette-Pinto empregava a eugenia como um instrumento modernizador: como uma ferramenta científica tanto para pensar o processo do aperfeiçoamento da raça quanto para defender o homem brasileiro das condenações implicadas no determinismo biológico. Na abertura do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, Roquette-Pinto deixava claro que "as leis da eugenia" deveriam ser aplicadas com o objetivo de "melhorar o patrimônio biológico" dos brasileiros. Assim, a seleção matrimonial deveria seguir os ensinamentos da ciência eugênica. Dever-se-ia incentivar o casamento entre pessoas com "boa herança", independentemente do "tipo racial". Ou seja, a preocupação eugênica do cientista recaía sobre a eliminação de doenças hereditárias localizadas em seres humanos particulares, e não sobre determinadas características raciais ou sobre a "mistura das raças" em si. A mestiçagem é um mal somente "quando realizada ao deus-dará dos infortúnios, sem eira nem beira, sem higiene e sem eugenia, sem educação e sem família", costumava dizer Roquette-Pinto. Num artigo publicado em 1933, o cientista chegou a sugerir a promoção de um concurso para escolher, entre trabalhadores rurais e operários das indústrias, um casal de jovens que apresentasse "os tipos de herança realmente eugênicas, e qualidades pessoais relevantes". Os vencedores deveriam ser premiados por fazendeiros e industriais com um pequeno aumento de salário, já que os casamentos eugênicos trariam, em última instância, lucros aos empregadores.

O fato de Roquette-Pinto ter lutado contra o determinismo biológico não significa, porém, que acreditasse numa "completa igualdade de atributos biológicos", conforme escreve Ventura Santos. E se o "peso do biológico" é, de certo modo, questionado no plano coletivo das raças humanas, Roquette-Pinto insiste, ao mesmo tempo, na necessidade do cuidado para com a "boa herança" no plano dos seres humanos particulares. A maneira como se dava, para ele, a relação entre "boa herança individual" e "boa herança coletiva" não parece bem explicada na argumentação deste pensador. Com o intuito de chamar a atenção dos leitores para as não raras incongruências que se expressavam nas atitudes de muitos daqueles que fervorosamente debatiam o tema da raça, Ventura Santos termina o seu ensaio com uma irônica comparação entre um estudo anatômico promovido pelo "clássico determinista racial" Nina Rodrigues e outro executado pelo combatente do chamado "racismo científico, Roquette-Pinto. Enquanto Nina Rodrigues, na sua análise do crânio de Antonio Conselheiro, não conseguiu detectar nenhuma anormalidade nas características fisiológicas daquele personagem que descrevia como "delirante" e "megalomaníaco", Roquette-Pinto teria descoberto na "complexidade das circunvoluções" cerebrais do autor de Os sertões evidências de sua genialidade.

Raça é um conceito elástico, ensina-nos Giralda Seyferth. Nunca houve consenso em torno da quantidade de raças existentes e em torno daquilo que define este conceito. As diversas contribuições desta coletânea alertam-nos para não partirmos de uma noção a-histórica de raça ou de eugenia. Para entendermos os usos, ambiguidades e "não-coerências" de tais conceitos e ideias, é preciso estudarmos os contextos, os interesses particulares e as convicções político-ideológicas daqueles que contribuíram para a sua construção e transformação.

Ventura Santos explica que, embora Roquette-Pinto tenha defendido "posições igualitárias, contrárias a noções de fatalismo racial", não chegou, contudo, "a propor uma completa desvinculação entre orgânico/racial e mental/social, que veio a se tornar a posição predominante na reflexão antropológica algumas décadas depois". Uma das razões pelas quais o cientista não investiu numa tal separação conceitual pode ter a ver com as suas fortes convicções positivistas e com o seu comprometimento com as causas da nação. Na América do Norte, o antropólogo Franz Boas, frequentemente lembrado pelos autores da coletânea e comparado com o nosso autor, estava, neste mesmo período, preparando o caminho para fazer um corte conceitual rigoroso entre o reino da natureza, de um lado, e o(s) mundo(s) da simbolização, de outro. Começava a se referir à existência de uma pluralidade de culturas - isto é, não mais a um só percurso possível de uma cultura humana única - que Boas valorizaria e analisaria de forma cada vez mais independente das esferas biológicas e geográfico-climáticas. Crítico ao determinismo biológico, tal como Roquette-Pinto, Boas convenceu-se, porém, já muito cedo - diferentemente do nosso autor - de que a diversidade das vivências e experiências humanas não podia ser explicada a partir de leis naturais.

O livro Antropologia brasiliana tem o mérito de situar as ações e ideias de Roquette-Pinto no contexto histórico local e internacional e, sendo assim, traz uma importante contribuição para várias áreas de conhecimento, especialmente para os estudos sobre o chamado pensamento social brasileiro, e será particularmente importante para uma melhor compreensão da tão espinhosa questão racial no Brasil.

Andreas Hofbauer é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília, Brasil (andreas.hofbauer@uol.com.br).

Fonte: Revista Estudos Históricos

Sobre periferias: Novos conflitos no Brasil contemporâneo


Sobre periferias: Novos conflitos no Brasil contemporâneo
Neiva Vieira da Cunha e Gabriel de Santis Feltran, Ed. Lamparina/Faperj


Os textos reunidos nessa coletânea deslocam o leitor para as “margens” – territórios que evocam de maneira conflitante algumas mudanças recentes na dinâmica social urbana. Os autores apostam de forma acertada na polissemia do termo periferia, buscando compreendê-lo como uma categoria que, por ser sempre valorativa, manifesta perspectivas de acusação, reivindicação, resistência e confrontação. Nesse campo temático, portanto, conjura-se uma série ampla de questões em torno dos conflitos urbanos contemporâneos, enfrentamentos políticos e suas formas de gerenciamento.

Os pesquisadores valorizam o dinamismo das fronteiras, apurando alguns domínios, já trabalhados durante décadas nas Ciências Sociais, de forma inovada, relacional, como chamam os organizadores. Como resultado, o que a mudança de foco permite ver são as conjunções entre o trabalho e a religião com o crime, a interconexão de programas sociais com mulheres, famílias e políticas estatais. Novos cenários de direito, expansão do consumo, mobilidade social e luta por reconhecimento são constatados.

Vistas em conjunto, as pesquisas anunciam a dimensão transversal do conflito que vem acompanhando as transformações em curso. Os processos atuais verificados em territórios periféricos apontam para um cenário híbrido: a experiência religiosa pentecostal, em lugar dateologia católica, não está completamente dissociada do universo moral do crime; os postos de trabalho fabril, antes pensados como os pilares do projeto de vida operário, foram substituídos por ocupações informais, ilegais e também ilícitas; e ainda, se antes se constatava a falta de políticas estatais nas periferias, hoje inúmeros programas sociais marcam a presença capilar e excessiva do Estado.

Os trabalhos de campo realizados em quebradas, ONGs, associações, albergues e favelas colocam à prova que uma apreensão sensível, tal como fizeram os autores, é capaz de lançar sobre as periferias novas perspectivas analíticas.

Mariana Medina Martinez é Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UFSCar).

quinta-feira, 6 de julho de 2017

O Visual do Corpo em Antropologia


A Antropologia, e antes dela, a Etnografia, sempre foi fascinada pelos aspectos visuais dos Outros: corpos dos outros ou outros corpos ? Até 1950, o corpo era considerado como o melhor “instrumento” para compreender as diferentes culturas, as diferenças étnicas que sobre ele se espalhavam. A partir desse momento epistemológico, dessa visão do corpo como “chave” para entender o Outro, as novas teorias raciais aparecem nas Ciências Humanas, assim como nascem duas novas disciplinas: a antropologia física e a antropometria. Infelizmente, de uma certa maneira, a emergência de uma dita antropologia visual é indissociável à historia do estatuto do corpo em antropologia, e o corpo é um “objeto” tradicional de pesquisa em antropologia visual. Portanto, após das teorias racistas aplicadas ao “corpo primitivo” pela antropologia física, a desconfiança e o desprezo acadêmico a respeito das imagens (fotográficas ou videográficas) nunca parou de existir. 


O Corpo na Teoria Antropológica


Miguel Vale de Almeida

Para o antropólogo Michael Jackson (1989) a subjectividade está localizada no corpo, contrariando assim a ideia de cultura como algo de superorgânico. Usando um conjunto de ideias fenomenológicas e terapêuticas, segundo comenta A. Strathern (1995), que em princípio são gerais e trans-culturais, Jackson vai contra a posição simbolista, afirmando que o corpo não se limita a reflectir a sociedade. Ele não é apenas inscrito, como nas teorias de Durkheim e Mary Douglas; constitui-se a si mesmo como body subject. O próprio conhecimento derivaria da empatia e do envolvimento prático e sensual – e não de princípios gerais. O uso mimético do corpo seria a base para alcançar o sentimento de viver em comum com os outros. 



Antropologia do Corpo


A partir da visão de que o corpo é uma construção sócio cultural e tem implicações diretas na...... Palavras-Chave: Antropologia do corpo; Diversidade; Xamãs.


O CORPO: UMA VISÃO DA ANTROPOLOGIA E DA CULTURA


David Le Breton - Antropologia do Corpo e Modernidade


David Le Breton já é um autor conhecido nos meios acadêmicos brasileiros (Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade 1, A Sociologia do Corpo 2 e As Paixões Ordinárias: Antropologia das Emoções 3). Apesar de a primeira edição de Antropologia do Corpo e Modernidade ter sido lançada na França em 1990 e a terceira e última ser de 2003, só agora os leitores podem tomar contato com ideias seminais que parecem ser o pilar das outras obras do autor. Nela, a premissa maior é que o corpo é uma construção simbólica e não uma realidade em si. Nesse sentido, o corpo que parece ser evidente é mais inapreensível do que se pensa, uma vez que é efeito de uma construção social e cultural.

Le Breton traz uma análise de longo alcance, que se estende do início da modernidade até as experiências genéticas atuais. Segundo o autor, ao longo do tempo, veio sendo construída uma paradoxal concepção acerca do corpo. De um lado, ele é visto como o demarcador das fronteiras entre o indivíduo e o mundo; de outro, é concebido como dissociado do homem. Em outras palavras, instala-se uma bipolaridade: uma visão do corpo mais como um ter do que um ser, em que o homem não só se distancia do corpo, mas também o deprecia, e outra que faz do corpo a identidade do homem, produzindo no indivíduo um sentimento novo de ser ele mesmo, antes de ser membro de uma comunidade.

Esse paradoxo se traduz por uma tripla cisão, gestada no intervalo entre os séculos XVI e XVII. Assim - ao contrário do que se verifica na Idade Média e no Renascimento - na Modernidade ocidental observa-se a concepção do homem cindido de si mesmo (divisão entre homem e corpo), dos outros e do cosmo. Isso, de certa forma, rompe com o pensamento das sociedades tradicionais, em que não se concebia a separação entre a pessoa e o seu corpo; o homem e os outros; e as matérias constituintes do homem e as que dão consistência ao cosmo.

Da Modernidade aos dias atuais, no cenário ocidental, várias concepções sobre o corpo foram se constituindo, resultando numa verdadeira polissemia corporal. Segundo o autor, essas concepções são tributadas a três esferas sociais e culturais: o acentuado individualismo (em que os vínculos entre as pessoas são relaxados, e a oposição entre vida privada e vida pública é valorizada), a emergência de um saber racional positivo e laico sobre a natureza (resultando no estudo do corpo como realidade em si mesma, dissociada do homem) e o recuo das tradições populares e locais, dando, aos poucos, lugar à medicina (instituída como o saber oficial sobre o corpo).

Na linha do tempo, o autor destaca os anos 60 do século XX como cenário do desenvolvimento de um novo imaginário ocidental acerca do corpo, traduzido em discursos e práticas revestidos pela mídia. Nessa instância, o corpo se torna uma espécie de alter ego. Ele passa a ser o lugar do bem-estar, do bem-parecer, da paixão pelo esforço ou pelo risco. Investimentos midiáticos voltados para esses focos são produzidos, tematizados no body-bulding, nos cosméticos, nas dietéticas, nas maratonas e nos esportes de risco.

Na sociedade ocidental atual, para o autor, predomina o divórcio entre dois conjuntos de representações do corpo: um relacionado aos saberes populares e outro tributado à cultura erudita, principalmente de natureza biomédica. Transitam nessas representações as visões de gênero e de categorias sociais, que ora se diferenciam, ora se intercambiam. Nesse sentido, em termos gerais, os signos corporais tradicionalmente atribuídos ao masculino e ao feminino não só coexistem separadamente, como também se deslocam de um gênero para outro. Assim, observa-se que o corpo de homem pode se tornar sexual e o de mulher, musculoso. Quanto às categorias sociais, destaca-se que a aposta simbólica do corpo pode se dar apenas para alguns segmentos sociais, enquanto outros podem valorizar mais a força e a resistência do que a forma e o bem-parecer.

O saber biomédico - visto como representação oficial do corpo humano atual - é destaque na obra em questão. Nessa discussão, o autor focaliza vários temas: a separação do sujeito de seu corpo em busca de uma eficácia médica; a imagética médica, que busca atravessar o interior do corpo invisível; a procriação sem a sexualidade; o efeito do placebo; as relações e tensões entre a medicina e as medicinas vistas como paralelas, dentre outros temas.

Ao longo da obra, são reforçados os posicionamentos de vários antropólogos que defendem que os corpos, além de serem biologicamente constituídos, passam por processos de modelação cultural, assumindo distintos significados em distintos espaços sociais e diferentes épocas. Marcel Mauss 4 é uma referência clássica no conjunto desses posicionamentos. Segundo ele, o corpo tanto é a ferramenta original com que os humanos moldam o seu mundo, como é a substância original a partir da qual o mundo humano é moldado. A construção cultural diz respeito às técnicas tradicionais de saber servir desenvolvidas pelo corpo, referindo-se ainda à imitação de atos que são bem-sucedidos e observados em pessoas consideradas autoridades por quem imita.

Le Breton não só atualiza esse debate da construção cultural do corpo, como também pode estabelecer diálogo com posicionamentos que procuram lidar com as tensões entre natureza e cultura que atravessam a discussão acerca do corpo. Nesses posicionamentos, destaca-se o de Butler, que, em uma entrevista 5, observa que tanto a materialidade precisa do discurso para se tornar acessível, quanto o discurso não conseguem captar totalmente a materialidade que lhes é anterior, revelando, assim, um limite à construtividade.

FONTE: Scielo