Fundador da antropologia estruturalista, o francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) é um dos cientistas sociais mais importantes do século passado. Trabalhou na recém-construída Universidade de São Paulo, para a qual Célestin Bouglé (o então diretor da Escola Normal Superior da França) lhe propôs apresentar sua candidatura acreditando haver milhares de índios nos subúrbios paulistanos. A possibilidade de trabalhar no Brasil agradava Lévi-Strauss pelo fato de ultrapassar a filosofia especulativa de sua formação e se dedicar empiricamente a jovem disciplina de etnologia. Em três anos no país ele conheceu e estudou algumas etnias indígenas, experiência que ficou descrita principalmente em seu livro Tristes Trópicos. Em 1939, voltou à França, mas devido à ocupação nazista, buscou exílio nos EUA, país em que fora obrigado a encurtar seu nome para evitar a confusão com a marca de jeans homônima. Segundo conta François Dosse, não havia um ano em que ele não recebia um pedido de encomenda de jeans para África (1993, p. 32-33). Com o término da guerra, agora já retornado ao seu país, foi nomeado, em 1959, para a cadeira de antropologia social do respeitado Collège de France, universidade onde lecionou por mais de 20 anos.
O suplício do Papai Noel é um ensaio curto em que Claude Lévi-Strauss analisa um curioso acontecimento de véspera de natal na França. Em 24 de dezembro de 1951, nas grades da Catedral da cidade de Dijon, Papai Noel foi queimado publicamente, contando ainda com a presença de centenas de crianças dos orfanatos locais. A execução simbólica foi incentivada pelo clero que “condenara Papai Noel como usurpador e herege. Ele foi acusado de paganizar a festa de Natal e de se instalar como um intruso, ocupando um espaço cada vez maior”, registra o jornal France-Soir, de 1951. O post que se segue é um resumo do ensaio de Lévi-Strauss e me será útil para comentar (num próximo texto) sobre um recentíssimo acontecimento no Brasil, que alimenta a discussão entre ateus e religiosos sobre a liberdade de expressão.
O acontecimento em Dijon gerou polêmica e dividiu a opinião pública. Um estranho paradoxo foi notado por Lévi-Strauss nas discussões. Os anticlericalistas, geralmente cientificistas, defendiam Papai Noel, logo, o irracionalismo e a superstição, enquanto, por outro lado, a Igreja se posicionou ao lado da racionalidade e do espírito crítico. Mas ninguém se perguntou afinal por que os adultos inventaram Papai Noel. É a esta questão que o ensaio antropológico se direciona. Para respondê-la, Lévi-Strauss realiza uma longa digressão que passa a explicar a eclosão do festivo natalino na França, a gênese histórica do Natal moderno e a função sócio-estrutural a qual esse rito se presta.
Com a melhora econômica da França após a II Guerra Mundial, houve uma mudança na comemoração de Natal que se explica, em parte, pela influência e prestígio dos EUA em terras galesas. Isto podia ser observado na época pelos inúmeros pinheiros, adornos em papéis de presente, cartões, Exércitos da Salvação e pessoas trajadas de Papai Noel nas lojas. Contudo, seria simplista explicar apenas pela influência americana. Outras razões apontadas são os muitos estadunidenses que moravam na França e comemoravam o Natal à maneira yankee; os cinemas, as revistas e os romances que tornaram o costume conhecido; o prestígio dos EUA devido a seu poderio militar e econômico (modelo portanto espelhado por outras sociedades ocidentais); o Plano Marshall e a importação de mercadorias de Natal. Por outro lado, poderia se objetar que as camadas economicamente mais baixas da sociedade que desconhecem a origem desses ritos, bem como os meios operários sob influência comunista, que rechaça o “estilo de vida americana”, adotaram o costume como qualquer outro grupo social. O antropólogo explica então que não se trata de uma difusão simples, mas, como anotou Kroeber: uma “difusão por estímulo”. Invés de o costume ser assimilado por importação, ele provoca o “surgimento de um uso semelhante ao que já estava potencialmente presente”. A metáfora segundo a qual a planta só pode germinar em solo fértil é bastante instrutiva para ilustrar o caso. Por exemplo, um fabricante de papel viaja a negócios aos EUA e lá descobre um papel de presente muito mais elaborado do que o que ele vendia. A dona de casa o compra por lhe satisfazer uma exigência estética, isto é, uma disposição afetiva, já existente, se materializa com o adereço encontrado.
Embora haja traços arcaicos, a festa natalina moderna ascendeu na França antes da Segunda Guerra. No século 19, o pinheiro chega ao país. O verbete noël designa, em um dicionário da época, um ramo de pinheiro com enfeites, guarnecido de balas e brinquedos, que se oferece a crianças. A variedade de nomes que se dá àquele que distribui os presentes (Papai Noel, São Nicolau, Santa Claus) mostra que a figura é resultado de convergência e não de protótipo conservado. A comemoração que teve apogeus e declínios, expressa em sua versão americana apenas uma encarnação mais moderna. Papai Noel, especificamente, é uma criação recente, e mais recente ainda é a crença de que ele vive na Groelândia; fato este que obriga a Dinamarca (dona do território) a manter uma agência especial dos correios por lá, só para receber cartas do mundo todo destinadas a Papai Noel. Acredita-se que essa crença foi difundida durante a estadia de tropas americanas na Groelândia e Islândia durante a Segunda Guerra Mundial. Todavia, as renas já apareciam em documentos renascentistas (sécs. 14-16) como troféus durante as festas natalinas. São partes dos elementos históricos de uma tradição que se funde e se refunde.
Analisado pela simbologia antropológica de Lévi-Strauss, Papai Noel, ao vestir vermelho, é um rei. Botas, roupas pesadas, peles, barbas brancas e trenó evocam o inverno. Sua idade revela a forma benevolente da autoridade dos antigos. Não é um ser mítico. Mas sem dúvidas pertence à família das divindades. As crianças prestam-no culto em certas épocas do ano sob a forma de pedidos e de cartas. Ele recompensa os bons e priva os maus. É, portanto, a divindade de uma categoria etária. Só não é uma divindade verdadeira porque os adultos não acreditam nele, embora incentivem as crianças a acreditarem. Tal divindade liga-se aos ritos de iniciação de uma sociedade, pois divide as crianças dos adultos e adolescentes. Estas divisões são comuns em todas as sociedades. É raro encontrar uma sociedade em que as crianças (e também muitas vezes as mulheres) não são “excluídas” da sociedade dos homens devido à ignorância de certas crenças e mistérios alimentada pelos últimos, e que estes revelam num momento oportuno, sacramentando assim a passagem entre dois mundos – aponta o pesquisador (p. 24). Os ritos de iniciação têm a função de ajudar os mais velhos a manter a ordem e a obediência entre os mais novos. O Papai Noel, por exemplo, é evocado para que as crianças se comportem e para disciplinar suas reivindicações de presentes, uma espécie de figura de negociação entre as gerações.
Partindo destas considerações, o autor faz uma analogia entre Papai Noel e as katchinas; personagens de uma determinada sociedade indígena, situada no sudoeste dos EUA, que encarnam deuses e ancestrais. Trata-se na realidade de índios adultos usando vestes e máscaras que aparecem na aldeia para dançar e punir ou recompensar as crianças sem que elas saibam quem está por baixo da roupa. Segundo o mito indígena, as katchinas são crianças que morreram afogadas, mas que voltavam da além-vida para assombrar a aldeia, raptando algumas crianças. Os pueblos teriam então feito o acordo de representarem estas entidades numa época do ano para ficarem livres dos assombros. Para Lévi-Strauss, a questão da ordem é secundária, pois em primeiro lugar a função das katchinas é provar a morte e dar o testemunho da vida após a morte. Daí explica-se a repartição da sociedade em duas, entre iniciados (adultos) e não-iniciados (crianças). As crianças são excluídas porque elas são as próprias katchinas. Seu lugar é outro: não com as máscaras e os vivos, mas com os deuses e os mortos. Isto é, com as divindades que são os mortos. E os mortos são as crianças. O mesmo se aplica a sociologia iniciática que envolve Papai Noel. Para além da oposição entre adultos (que sabem) e crianças (que ignoram), há uma oposição simbólica mais profunda, entre vivos e mortos.
A análise sincrônica da antropologia é confirmada também pela análise diacrônica de folcloristas e historiadores da religião. Para estes, a origem de Papai Noel se encontra no Abade de Liesse (Abbas Stultorum), ou Lord of Misrule, personagens que são reis do Natal (reis de um período, temporários), herdeiros do rei das Saturnais da época romana. As Saturnais eram festas dos mortos por violência ou sem sepultura. Para o estudo diacrônico, Papai Noel moderno é a fusão sincrética de algumas figuras: Abade de Liesse, bispo-menino eleito sob a invocação de São Nicolau, e o próprio São Nicolau, cuja festa liga-se a crença relacionada a meias, sapatos e chaminés. Abade de Liesse reinava interinamente dia 25 de dezembro; São Nicolau tinha a festa dia 6 de dezembro; os bispos-meninos em 28 de dezembro; e o Jul escandinavo era comemorado também em dezembro. Supõe-se que a Igreja marcou a data do natal para dia 25 para substituir as festas pagãs do dia 17 que, no fim do Império Romano, ia até dia 24. Nota-se, portanto, não uma sobrevivência totalmente contínua, mas uma fusão e transmutação de elementos festivos de Natal.
As festas Saturnais e o Natal da Idade Média podem explicar o sentido profundo da estrutura em tais instituições recorrentes que se mostra na superfície do Natal moderno. É perceptível que as festas de dezembro da Antiguidade à Idade Média possuem características semelhantes: decoração das casas com folhagens verdes; presentes são trocados ou dados às crianças; alegria e festejos; confraternização entre ricos e pobres, senhores e servos. As Saturnais romanas e o Natal medieval são reuniões e comunhões! Escravos e servos sentam-se a mesa farta e os senhores tornam-se seus servidores. Homens e mulheres vestem as roupas uns dos outros. Mas ao mesmo tempo a sociedade se reparte ao meio. Nessa divisão, a juventude fica autônoma e elege seu soberano. Em geral com o título aproximado de Senhor da Desrazão. Ao que esse título indica, a juventude age de maneira enlouquecida, cometendo abusos contra a outra parte da população, desde xingamentos a assassinatos. Segue a ideia de “colocar os demônios para fora”. Uma espécie de negociação com a escuridão para receber novamente a luz, que o filme The Purge (2013) traz uma versão pós-moderna e secularizada. Assim, o clima de solidariedade dá lugar ao antagonismo exacerbado, tanto nas Saturnais como no Natal medieval. O Abade de Liesse é quem realiza a mediação entre estes dois aspectos, contendo os excessos e estabelecendo os limites. Mas o que esta figura tem a ver com seu descendente remoto, o velho Noel?
Lévi-Strauss na Amazônia, em 1936
Ora, do ponto de vista histórico, Papai Noel resulta do deslocamento da festa de São Nicolau (6 de dezembro), assimilada a comemoração de Natal, três semanas depois. “Um personagem real se tornou um personagem mítico; uma emanação da juventude, simbolizando seu antagonismo em relação aos adultos, fez-se símbolo da idade madura, tradução da disposição benévola em relação à mocidade; o apóstolo das más condutas é incumbido de sancionar as boas condutas” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 36-37). Em nossa sociedade contemporânea, a juventude perdeu lugar como categoria etária específica, logo a “desrazão” do Natal perdeu seu apoio como havia no medievo e nas Saturnais. É interessante notar que as crianças na Idade Média não esperavam seus presentes, mas iam de casa em casa, disfarçadas, cantando e recebendo doces e frutas. Seus disfarces as transformavam em espíritos e fantasmas, suas músicas evocavam a morte para fazerem valer seus pedidos. As coletas começavam em geral três semanas antes do Natal. Estes rituais também ocorriam em outras épocas do ano, mas especialmente no outono. Assim, o primeiro período peditório, o Hallow-Even, é na véspera do dia de todos os santos. Crianças vestidas de fantasmas e esqueletos perseguem os vivos (adultos). O avanço do outono até o solstício marca o resgate da luz e da vida: “retorno dos mortos, suas ameaças e perseguições, o estabelecimento de um modus vivendi com os vivos na festa do intercâmbio de serviços e presentes, e, por fim, o triunfo da vida, quando no dia de Natal os mortos, cobertos de presentes, deixam os vivos em paz até o próximo outono” (p. 40-41).
Neste sentido, o antropólogo questiona: quem pode personificar os mortos numa sociedade de vivos senão todos os que não estão completamente integrados ao grupo, que participam da alteridade dual entre vivos e mortos? Não à toa, estrangeiros, escravos, crianças e mendigos são os principais beneficiários da festa. “Não surpreende, pois, que o Natal e o Ano Novo (seu duplo) sejam festas de presentes: a festa dos mortos é, na essência, a festa dos outros, visto que o fato de ser outro é a primeira imagem aproximada que podemos construir a respeito da morte” (p. 43). Finalmente, o autor diz que agora é possível responder as principais indagações do ensaio que ficaram implícitas. Por que a figura de Papai Noel ganha espaço e por que a Igreja está preocupada?
Papai Noel é herdeiro e ao mesmo tempo antítese do Senhor da Desrazão. Essa transformação indica uma melhora em nossa relação com a morte, porque agora podemos ficar quites com ela sem precisar permitir temporariamente a subversão da ordem e das leis. Essa relação é regida atualmente por uma entidade benevolente, podemos ser generosos, oferecer presentes e brinquedos, símbolos. A Igreja cristã está certa em se preocupar com o paganismo de Papai Noel. O fortalecimento deste é o enfraquecimento da relação entre mortos e vivos. Diametralmente, esse enfraquecimento mostra o medo da morte, como representação em termos de empobrecimento, rigidez e privação. O que os adultos demonstram ao prestigiarem Papai Noel é o desejo de acreditar numa generosidade irrestrita, gentileza desinteressada, suspensão do receio, da amargura e da inveja. Claro, eles não podem compartilhar plenamente desta ilusão, mas alimentada nos outros (nas crianças), ela fornece aquecimento a alma (p. 45).
Dizer às crianças que o presente vem do além é uma saída para ofertá-los ao além, aos mortos. Mas, como mostra James Frazer, há uma diferença significativa entre cristãos e pagãos em relação aos mortos. Os últimos rogam aos mortos, enquanto os primeiros rogam pelos mortos. Todavia, cabe perguntar se o homem moderno não pode exigir o direito de ser pagão – como ficou entrevisto na reação dos anticlericalistas ao “racionalismo” da Igreja. Frazer mostra também que algo se perdeu entre as Saturnais e o Natal da Idade Média. É que o rei das Saturnais remonta a um protótipo antigo que depois dos excessos da “desrazão” era sacrificado no altar de Deus. Ironicamente, graças ao clero da cidade de Dijon e a fogueira moderna de Papai Noel, o herói foi totalmente reconstituído depois de um hiato de milênios.
Referências:
DOSSE, François. História do estruturalismo, vol. 1: o campo do signo, 1945-1966. São Paulo: Ensaio; Campinas, SP: Ed. Da Unicamp, 1993.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O suplício do Papai Noel. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
THE PURGE.* Diretor: James DeMonaco. Produtor: Michael Bay. Universal Pictures. EUA, cor, 2013, 85min.
*Em português-brasileiro o filme recebeu o título de “Uma Noite de Crime”, creio que “O Expurgo” traduziria mais adequadamente a ideia da trama.
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