Ficha de Leitura - Aprender
Antropologia LaPlatine
A Pré-história Da
Antropologia
Capitulo 1
Elaborado por: Hélder Luís
A génese da reflecção antropológica contemporânea descoberta do Novo Mundo. O Renascimento explora espaços até então desconhecidos e começa a elaborar discursos sobre os habitantes que povoam aqueles espaços. A grande questão que e então colocada, e que nasce desse primeiro confronto visual com a alteridade, e a seguinte: aqueles que acabaram de serem descobertos pertencem a humanidade? O critério essencial para saber se convém atribuir-lhes um estatuto humano e, nessa época, religioso: O selvagem tem uma alma? O pecado original também lhes diz respeito? – Questão capital para os missionários, já que da resposta irá depender o fato de saber se e possível trazer-lhes a revelação.
Nessa época e que começam a se esboçar as duas ideologias concorrentes, mas das quais uma consiste no simétrico invertido da outra: a recusa do estranho apreendido a partir de uma falta, e cujo corolário e a boa consciência que se tem sobre si e sua sociedade.
Ora, os próprios termos dessa dupla posição estão colocados desde a metade do século XIV: no debate, que se torna uma controvérsia pública, que durara vários meses (em 1550, na Espanha, em Valladolid), e que opõe o dominicano Las Casas e o jurista Sepulvera.
Las Casas:
“Aqueles que pretendem que os índios são bárbaros, responderemos que essas pessoas têm aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem política que, em alguns reinos, é melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou até superavam muitas nações e uma ordem politica que, em alguns reinos, é melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou até superavam muitas nações do mundo conhecidas como policiadas e razoáveis, e não eram inferiores a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e os romanos, e até, em alguns de seus costumes, os superavam. Eles superavam também a Inglaterra, a França, e algumas de nossas regiões da Espanha. (...) Pois a maioria dessas nações do mundo, senão todas, foram muito mais pervertidas, irracionais e depravadas, e deram mostra de muito menos prudência e sagacidade em sua forma de se governarem e exercerem as virtudes morais. Nós mesmos fomos piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extensão de nossa Espanha, pela barbárie de nosso modo de vida e pela depravação de nossos costumes”.
Sepulvera:
“Aqueles que superam os outros em prudência e razão, mesmo que não sejam superiores em força física, aqueles são, por natureza, os senhores; ao contrário, porém, os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo que tenham as forças físicas para cumprir todas as tarefas necessárias, são por natureza servos. E é justo e útil que sejam servos, e vemos isso sancionado pela própria lei divina. Tais são as nações bárbaras e desumanas, estranhas `a vida civil e aos costumes pacıficos. E será sempre justo e conforme o direito natural que essas pessoas estejam submetidas ao império de príncipes e de nações mais cultas e humanas, de modo que, graças `a virtude destas e a prudência de suas leis, eles abandonem a barbárie e se conformem a uma vida mais humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse império, pode-se impô-lo pelo meio das armas e essa guerra será justa, bem como o declara o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos dominem aqueles que não têm essas virtudes”.Ora, as ideologias que estão por trás desse duplo discurso, mesmo que não se expressem mais em termos religiosos, permanecem vivas hoje, quatro séculos após a polémica que opunha Las Casas a Sepulvera.
A Figura Do Mau
Selvagem E Do Bom Civilizado
A
extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos homens como
um fato, e sim como uma aberração exigindo uma justiçarão. A antiguidade grega
designava sob o nome de bárbaro tudo o que não participava da helenidade (em
referencia a inarticulação do canto dos pássaros oposto a significacao da
linguagem humana), o Renascimento, os séculos XVII e XVIII falavam de naturais
ou de selvagens (isto ´e, seres da floresta), opondo assim a animalidade a`
humanidade. O termo primitivos ´e que triunfara´ no seculo XIX, enquanto
optamos preferencialmente na época actual pelo de subdesenvolvidos.
A pré-história da Antropologia
A
toda a humanidade, e em especial, a mais característica dos “selvagens”. Entre
os critérios utilizados a partir do seculo XIV pelos europeus para julgar se convém
conferir aos índios um estatuto humano, além do critério religioso do qual já
falamos, e que pede, na configuracacao na qual nos situamos, uma resposta
negativa (“sem religião nenhuma”, são mais diabos), citaremos:
•
A aparência física: eles estão nus ou “vestidos de peles de animais”; • os
comportamentos alimentares: eles ”comem carne crua”, e é todo o imaginário do
canibalismo que ira aqui se elaborar; • a inteligência tal como pode ser
apreendida a partir da linguagem: eles falam “uma língua ininteligível”.
Assim,
não acreditando em Deus, não tendo alma, não tendo acesso a linguagem, sendo
assustadoramente feio e alimentando-se como um animal, o selvagem ´e apreendido
nos modos de um bestiário. E esse discurso sobre a alteridade, que recorre constantemente
a metáfora zoológica, abre o grande leque das ausências: sem moral, sem religião,
sem lei, sem escrita, sem Estado, sem consciência, sem razão, sem objectivo,
sem arte, sem passado, sem futuro. Cornelius de Pauw acrescentara ate, no seculo
XVIII: “sem barba”, sem sobrancelhas, sem pelos, sem espırito sem ardor para
com sua fêmea”.
Assim”,
escreve Lévi-Strauss (1961), Ocorrem curiosas situações onde dois
interlocutores dão-se cruelmente a réplica. Nas Grandes Antilhas, alguns anos após
a descoberta da América, enquanto os espanhóis enviavam comissões de inquérito
para pesquisar se os indígenas possuíam ou não uma alma, estes empenhavam-se em
imergir brancos prisioneiros a fim de verificar, por uma observação demorada, se
seus cadáveres eram ou não sujeitos a putrefacção. Especialmente Hans Staden,
V´eritable Histoire et Descriptiou d’un Pays Habit´e par des Hommes Sauvages,
Nus. F´eroces et Anthropophages, 1557, reed. Paris, A. M. JVl´etaili´e, 1979. Essa
falta pode ser apreendida através de duas variantes: I) não têm,
irremediavelmente, futuro e não temos realmente nada a esperar dele (Hegel); 2)
´e possível fazê-los evoluir. Pela acção missionária (a partir século XVI).
Opiniões
desse tipo são inumeráveis, e passaram tranquilamente para nossa época. No século
XIX, Stanley, em seu livro dedicado a` pesquisa de Livingstone, compara os
africanos aos ”macacos de um jardim zoológico”, e convidamos o leitor a ler ou
reler Franz Fanon (1968), que nos lembra o que foi o discurso colonial dos franceses
na Argélia.
Mais
dois textos irão deter mais demoradamente nossa atenção, por nos parecerem
muito reveladores desse pensamento que faz do selvagem o inverso do civilizado.
São as Pesquisas sobre os Americanos ou Relatos Interessantes para servir a História
da Espécie Humana, de Cornelius de Pauw, publicado em 1774, e a famosa Introdução
a Filosofia da História, de Hegel.
De
Pauw nos propõe suas reflexões sobre os índios da América do Norte. Sua convicção
e a de que sobre estes lílios a influencia da natureza e total, ou mais
precisamente negativa. Se essa raça inferior não tem história e esta pura
sempre condenada, por seu estado ”degenerado”, a permanecer fora do movimento
da História, a razão deve ser atribuída ao clima de uma extrema umidade:
Deve
existir, na organização dos americanos, uma causa qualquer que embrutece sua
sensibilidade e seu espírito. A qualidade do clima, a grosseria de seus
humores, o vício radical do sangue, a constituição de seu temperamento
excessivamente reumático pode ter diminuído o tom e o saracoteio dos nervos
desses homens embrutecidos.
Eles
têm, prossegue Pauw, um temperamento tão húmido quanto o ar e a terra onde
vegetam que explica que eles não tenham nenhum desejo sexual. Em suma, são infelizes
que suportam todo o peso da vida agreste na escuridão das florestas, parecem
mais animais do que vegetais. Após a degenerescência ligada a um “vício de constituição
física”, Pauw chega a degradação moral. E a quinta parte do livro, cuja
primeira seção ´e intitulada: ”O génio embrutecido dos Americanos”.
Essa
separação entre um estado de natureza concebido por Pauw como irremediavelmente
imutável, e o estado de civilização, pode ser visualizado num mapa-mundo. No século
XVIII, a enciclopédia efectua dois traçados: um longitudinal, que passa por
Londres e Paris, situando de um lado a Europa, a Africa e a Asia, de outro a América,
e um latitudinal dividindo o que se encontra ao norte e ao sul do equador. Mas,
enquanto para Buffon,
a proximidade ou o afastamento da linha equatorial são explicativos não apenas
da constituição física mas do moral dos povos, o autor das Pesquisas Filosoficas
sobre os Americanos escolhe claramente o critério latitudinal, fundamento aos
seus olhos da distribuição da população mundial, distribuição essa não cultural
e sim natural da civilização e da barbárie: ”A natureza tirou tudo de um hemisfério
deste globo para dá-lo ao outro”. A diferença entre um hemisfério e o outro (o
Antigo e o Novo Mundo) ´e total, tão grande quanto poderia ser e quanto podemos
imaginá-la”: de um lado, a humanidade, e de outro, a ”estupidez na qual vegetam
“esses seres indiferenciados:
“Igualmente
bárbaros, vivendo igualmente da caça e da pesca, em países frios, estéreis,
cobertos de florestas, que desproporção se queria imaginar entre eles? Onde se
sente as mesmas necessidades, onde os meios de satisfaze-los São os mesmos,
onde as influencias do ar são tão semelhantes, e possível haver contradição nos
costumes ou variações nas ideias?”
Pauw
responde, evidentemente, de forma negativa. Os indígenas americanos vivem em um
estado de embrutecimento geral. Tão degenerados uns quanto os outros, seria em vão
procurar entre eles variedades distintivas daquilo que se pareceria com uma
cultura e com uma história.
A figura do mau
selvagem e do bom civilizado
Os
julgamentos que acabamos de relatar – que estão, notam, em ruptura com a
ideologia dominante do século XVIII, da qual falaremos mais adiante, e em
especial com o Discurso sobre a Desigualdade, de Rousseau, publicado vinte anos
antes – por excessivos que sejam, apenas radicalizam ideais compartilhadas por
muitas pessoas nessa época. Ideais que serão retomadas e expressas nos mesmos
termos em 1830 por Hegel, o qual, em sua Introdução a Filósofa da História, nos
expõe o horror que ele ressente frente ao estado de natureza, que e o desses
povos que jamais-ascenderão a “história a consciência de si”.
Tudo,
na Africa, e nitidamente visto sob o signo da falta absoluta: os “negros” não
respeitam nada, nem mesmo eles próprios, já que comem carne humana e fazem comércio
da carne de seus próximos. Vivendo em uma ferocidade bestial inconsciente de si
mesma, em uma selvageria em estado bruto, eles não tem moral, nem instituições
sociais, religião ou Estado. Petrificados em uma desordem inexorável, nada, nem
mesmo as forças da colonização, poderá nunca preenchermos o fosso que os separa
da História universal da humanidade.
Capítulo 2. O Século
XVIII
A invenção do conceito
de homem
Se
durante o Renascimento esboçou-se, com a exploração geografica de continentes
desconhecidos, a primeira interrogação sobre a existência múltipla do homem,
essa interrogação fechou-se muito rapidamente no século seguinte, no qual a
evidencia do cogito, fundador da ordem do pensamento clássico, exclui da razão
o louco, a criança, o selvagem, enquanto figuras da anormalidade.
Será
preciso esperar o século XVIII para que se constitua o projecto de fundar uma ciência
do homem, isto e, de um saber não mais exclusivamente especulativo, e sim
positivo sobre o homem. Enquanto encontramos no século XVI elementos que
permitem compreender a pré-história da antropologia, enquanto o século XVII
(cujos discursos não nos são mais directamente acessíveis hoje) interrompe
nitidamente essa evolução, apenas no seculo XVIII e que entramos
verdadeiramente, como mostrou Michel Foucault (1966), na modernidade. Apenas
nessa época, e não antes, e que se pode apreender as condições históricas,
culturais e epistemológicas de possibilidade daquilo que vai se tornar a
antropologia.
Antes
do final do século XVIII, escreve Fou-cauilt, o homem não existia. Como também o
poder da vida, a fecundidade do trabalho ou a densidade histórica da linguagem.
´E uma criatura muito recente que o demiurgo do saber fabricou com suas próprias
mãos, há menos de duzentos anos (...) Uma coisa em todo caso e certa, o homem
não e o mais antigo problema, nem o mais constante que tenha sido colocado ao
saber humano. O homem e uma invenção e a arqueologia de nosso pensamento mostra
o quanto e recente.
Capítulo 2. O seculo
XVIII
Talvez seja o seu fim
O
projecto antropológico (e não a realização da antropologia como a entendemos
hoje) supõe:
1)
A construção de um certo numero de conceitos, começando pelo próprio conceito
de homem, não apenas enquanto sujeito, mas enquanto objecto do saber; abordagem
totalmente inédita, já que consiste em introduzir dualidade característica das ciências
exactas (o sujeito observante e o objecto observado) no coração do próprio
homem;
2)
A constituição de um saber que não seja apenas de reflexao, e sim de observação,
isto e, de um novo modo de acesso ao homem, que passa a ser considerado em sua existência
concreta, envolvida nas determinações de seu organismo, de suas relações de produção,
de sua linguagem, de suas instituições, de seus comportamentos. Assim começa a
constituição dessa positividade de um saber empírico (e não mais
transcendental) sobre o homem enquanto ser vivo (biologia), que trabalha
(economia), pensa (psicologia) e fala (linguística). Montesquieu, em O Espírito
das Leis (1748), ao mostrar a relação de interdependência que e a dos fenómenos
sociais, abriu o caminho para Saint-Simon que foi o primeiro (no século
seguinte) a falar em uma “ciência da sociedade”. Da mesma forma, antes dessa época,
a linguagem, quando tomada em consideração, era objecto de filosofia ou exegese.
Tornou-se paulatinamente (com de Brosses, Rousseau) o objecto especıfico de um
saber cientıfico (ou, pelo menos, de vocação cientıfica);
3)
Uma problemática essencial: a da diferença. Rompendo com a convicção de uma transparência
imediata do cogito, coloca-se pela primeira vez no século XVIII a questão da
relação ao impensado, bem como a dos possíveis processos de reapropriação dos
nossos condicionamentos fisiologicos, das nossas relações de produção, dos
nossos sistema de organização social. Assim, inicia-se uma ruptura com o
pensamento do mesmo, e a constituição da ideia de que a linguagem nos precede,
pois somos antes exteriores a ela. Ora, tais reflexoes sobre os limites do
saber, assim como sobre as relações de sentido e poder (que anunciam o fim da
metafísica) eram inimagináveis antes. A sociedade do século XVIII vive uma
crise da identidade do humanismo e da consciência europeia. Parte de suas
elites busca suas referências em um confronto com o distante.
Em
1724, ao publicar Os Costumes dos Selvagens Americanos Comparados aos Costumes
dos Primeiros Tempos, Lafitau se da´ por objectivo o de fundar uma “ciência dos
costumes e hábitos”, que, além da contingência dos fatos particulares, poderá
servir de comparação entre várias formas de humanidade. Em 1801, Jean Itard
escreve Da Educação do Jovem Selvagem do Aveyron. Ele se interroga sobre a
comum humanidade a qual pertencem o homem da civilização em que nos
transportamos e o homem da natureza, a crian¸ca-lobo.1 Mas foi Rousseau quem traçou,
em seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade, o programa que
se tornará o da etnologia clássica, no seu campo tema´tico2 tanto quanto na sua
abordagem: a indução de que falaremos agora;
4)
Um método de observação e análise: o método indutivo. Os grupos sociais (que começam
a ser comparados a organismos vivos, podem ser considerados como sistemas
“naturais” que devem ser estudados empiricamente, a partir do observação de
fatos, a fim de extrair princípios gerais, que hoje chamaríamos de leis.
Esse
naturalismo, que consiste numa emancipação definitiva em relação ao pensamento
teológico, impõe-se em especial na Inglaterra,3 com Adam Smith e, antes dele,
David Hume, que escreve em 1739 seu Tratado sobre a Natureza Humana, cujo
tıtulo completo e: “Tratado sobre a natureza Humana: tentativa de introdução¸ ao
de um método experimental de raciocínio para o estudo de assuntos de moral”. Os
filosofos ingleses colocam as premissas de todas as pesquisas que procurarão
fundar, no século XVIII, uma moral natural, um “direito natural”, ou ainda uma
“religião natural”.
Esse
projecto de um conhecimento positivo do homem – isto e, de um estudo de sua
existência empírica considerada por sua vez como objecto do saber – constitui
um evento considerável na história da humanidade.
Capitulo 2. O Século
XVIII
Constitutivo
da modernidade na qual, a partir dessa época, entramos. A fim de avaliar melhor
a natureza dessa verdadeira revolução do pensamento – que instaura uma ruptura
tanto com o “humanismo” do Renascimento como com o “racionalismo” do século clássico
- examinemos de mais perto o que mudou radicalmente desde o século XVI.
1) Trata-se
em primeiro lugar da natureza dos objectos observados. Os relatos dos viajantes
dos séculos XVI e XVII eram mais uma busca cosmografica do que uma pesquisa
etnografica. Afora algumas incursões tímidas para área das inclinações e dos “costumes”,
o objecto de observação, nessa época era mais o céu, a terra, a fauna e a flora,
do que o homem em si, e, quando se tratava deste, era essencialmente o homem físico
que era tomado em consideração. Ora, o século XVIII traça o primeiro esboço
daquilo que se tornara´ uma antropologia social e cultural, constituindo-se
inclusive, ao mesmo tempo, tomando como modelo a antropologia física, e instaurando
uma ruptura do monopólio desta (especialmente na França).
2)
Simultaneamente, o destaque se desloca pouco a pouco do objecto de estudo para
a actividade epistemológica, que se torna cada vez mais organizada. Os
viajantes dos séculos XVI e XVII colectavam “curiosidades”. Espíritos curiosos
reuniam colecções que iam formar os famosos ”gabinetes de curiosidades”,
ancestrais dos nossos museus contemporâneos. No século XVIII, a questão e: como
colectar? E como dominar em seguida o que foi colectado? Com a História Geral
das Viagens, do padre Prevost (1746), passa-se da colecta dos materiais para a
colecção das colectas. Não basta mais observar, e preciso processar a observação.
Não basta mais interpretar o que e observado, e preciso interpretar
interpretações. E desse desdobramento, isto e, desse discurso, que vai justamente
brotar uma actividade de organização e elaboração. Em 1789, Chavane, o
primeiro, dará a essa actividade um nome. Ele a chamará: a etnologia.
Finalmente,
e no século XVIII que se forma o par do viajante e do filosofo: o viajante:
Bougainville, Maupertuis, La Condamine, Cook, La P´erouse.
Nossas
missões cientıficas contemporâneas; o filosofo Buffon, Voltaire,
Rousseau, Diderot (em especial o seu Suplemento a Viagem de Bougainville) “esclarecendo”
com suas reflexoes as observações trazidas pelo viajante.
As
Considerações sobre os Diversos Métodos a Seguir na Observação dos Povos Selvagens,
de De Gerando (1800) são, quanto a isso, exemplares. Primeira metodologia da
viagem, destinada aos pesquisadores de uma missão nas “Terras Austrais”, esse
texto e uma crıtica da observação selvagem do selvagem, que procura orientar o
olhar do observador. O cientista naturalista deve ser ele próprio testemunha
ocular do que observa, pois a nova ciência – qualificada de ciência do homem ou
ciência natural e uma ciência de observação, devendo o observador participar da
própria existência dos grupos sociais observados.
Rousseau:
Suponhamos um Montesquieu, um Buffon,
um Diderot, um d’Alembert, um Condillac, ou homens de igual capacidade,
viajando para instruir seus compatriotas, observando como sabem faze-lo a
Turquia, o Egito, a Barbaria. Suponhamos que esses novos Hercules, de volta de
suas andanças memoráveis, fizessem a seguir a história natural, moral e polıtica
do que teriam visto, veríamos nascer de seus escritos um mundo novo, e aprenderíamos
assim a conhecer o nosso. Bougainville: Sou viajante e marinheiro, isto e, um
mentiroso e um imbecil aos olhos dessa classe de escritores preguiçosos e
soberbos que, na sombra de seu gabinete, filosofam sem fim sobre o mundo e seus habitantes,
e submetem imperiosamente a natureza a suas imaginações.
Porem,
o projecto de De Gerando não foi aplicado por aqueles a que se destinava
directamente, e não será, por muito tempo ainda, levado em conta. Se esse
programa que consiste em ligar uma reflexao organizada a uma observação
sistemática, não apenas do homem físico, mas também do homem social e cultural,
não pode ser realizado, e porque a época ainda não o permitia. O final do século
XVIII teve um papel essencial na elaboração dos fundamentos de uma ciência
humana. Não podia ir mais longe, e não poderíamos credita-lo aquilo que só será
possível um século depois.
Mais
especialmente, o obstáculo maior ao advento de uma antropologia cientıfica, no
sentido no qual a entendemos hoje, está ligado, a meu ver, a dois motivos
essenciais.
1 A
distinção entre o saber cientıfico e o saber filosofico, mesmo sendo abordada, não
e de forma alguma realizada. Evidentemente, o conceito da unidade e
universalidade do homem, que e pela primeira vez claramente afirmado, coloca as
condições de produção de um novo saber sobre o homem. Mas não leva isso facto a
constituição de um saber positivo. No final do século XVIII, o homem
interroga-se: sobre a natureza, mas não há biologia ainda (será preciso esperar
Cuvier); sobre a produção e reparti-tição das riquezas, mas ainda não se trata
de economia (Ricardo); sobre seu discurso mas isso não basta para elaborar uma
filosofia (Bopp), muito menos uma linguística.
3) Os
cientistas da expedição conduzida por Bodin não eram de forma alguma etnógrafos,
e sim médicos, zoólogos, mineralogos, e os objectos etnograficos que recolheram não
foram sequer depositados no Museu de Historia Natural de Paris, e sim
dispersados em colecções particulares. O próprio Gerando, observador dos povos
selvagens em 1800, torna-se visitante dos pobres. O que mostra a prontidão de
uma passagem possível entre o estudo dos indígenas e a ajuda aos indigentes,
mas sobretudo, nessa época, uma certa ausência de distinção entre a
antropologia principiante e a “filantropia”. Notemos finalmente que, publicado em
1800, o memorie de Gerando só foi reeditado- na França em 1883. E o primeiro
museu etnografico da Franca foi fundado apenas cinco anos antes (em Paris, no
Trocadero). Sendo depois substituído pelo actual Museu do Homem.
4) O
conceito de homem tal como e utilizado no século das luzes permanece ainda
muito abstracto, isto e, rigorosamente filosofico. Estamos na impossibilidade de
imaginar o que consideramos hoje como as próprias condições epistemológicas da
pesquisa antropológica. De fato, para esta, o objecto de observação não e o “homem”,
e sim indivíduos que pertencem a uma época e a uma cultura, e o sujeito que
observa não e de forma alguma o sujeito da antropologia filosofica, e sim um
outro indivíduo que pertence ele próprio a uma época e a uma cultura.
O
discurso antropológico do século XVIII e inseparável do discurso histórico
desse período, isto e, de sua concepção de uma historia natural, liberada da
teologia e animando a marcha das sociedades no caminho de um progresso
universal. Restara um passo considerável a ser dado para que a antropologia se
emancipe deste pensamento e conquiste finalmente sua autonomia. Paradoxalmente, esse
passo será dado no século XIX (em especial com Morgan).
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