GEERTZ, Clifford. "O pensamento como ato moral: dimensões éticas do trabalho de campo antropológico nos países novos". In: ______. Nova Luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 30-46.
Por: Felipe Silva Araujo
(bobsonda@hotmail.com)
A Antropologia Social é uma disciplina fascinante para qualquer interessado por métodos científicos e estudos epistemológicos. Talvez isso se dê, em parte, em virtude de um forte apelo à constante reinvenção de suas práticas de campo, algo que pode soar bastante comum para estudantes familiarizados com as ciências humanas, e ao mesmo tempo como algo academicamente "imoral" para aqueles familiarizados com as chamadas ciências duras. Para um estudante e pesquisador de ciências sociais, um antropólogo, por exemplo, como será que soa tal singularidade?
A experiência da etnografia suscita no pesquisador dilemas comuns de áreas que estudam pessoas para além de um olhar biológico, físico ou matemático, que estudam com os homens, em vez de neles. Numa leitura fria da prática etnográfica, o ser humano é muito mais complexo do que qualquer variável naturalista. Não se trata de anular o aspecto natural em função do social, mas em grande medida os etnógrafos estão preocupados em complementar ou confrontar diferentes paradigmas teóricos em função do registro da experiência corpo a corpo enquanto experiência do objeto em contexto, do significado compartilhado localmente, numa espécie de microfísica da cultura.
Para Clifford Geertz, a etnografia envolve este exame vermeeriano da experiência de pesquisa. Tal prática levanta questões de ordem ética que, não obstante diversas vezes ignoradas, compõem o universo de toda e qualquer investigação de questões e fatos sociais sujeitos a análises detalhistas de aspectos das sociedades e da cultura. Em Nova Luz sobre a Antropologia, o autor e antropólogo norte-americano encontra espaço para propor o debate sobre questões relacionadas com a disciplina antropológica no que diz respeito a uma suposta moralidade do pensar. Para ele, ao passo que "essas ciências se desenvolveram tecnicamente, sua situação moral tornou-se uma questão cada vez mais premente" (p. 30).
O texto focaliza suas experiências de campo no Marrocos e na Indonésia. O autor indaga a questão da modernização de sociedades tradicionais, como acontece nos dois "novos países" pesquisados, avaliando a partir disso a "pesquisa social como forma de conduta" e procurando "contribuir para que o debate sobre a situação moral das ciências sociais se faça em solo mais firme" (p. 32).
Em síntese de suas observações mais pontuais, o autor destaca o papel pouco eficaz da pesquisa social, diante dos problemas "diagnosticados" em tais países, no sentido de prover soluções. Parafraseando Bacon, ele reflete que o conhecimento "nem sempre resulta em grande coisa em matéria de poder" (p.33). Encontrar e tratar do problema estariam, segundo Geertz, em posições diferentes de alcance, o que desperta no pesquisador um dilema, uma dada "situação moral" (ainda que em caráter profissional).
Afirma ainda que os diversos tipos de questões morais colocadas pela prática da etnografia muitas vezes se assentam em uma espécie de "assimetria radical de opiniões" entre o informante e o pesquisador, o que por sua vez "dá ao trabalho de campo esse colorido moral muito especial que considero irônico".
[...] o antropólogo é um mostruário de bens que, apesar da semelhança superficial com produtos locais, não estão efetivamente disponíveis no mercado interno. (p. 38)
Diante de tamanhas diferenças entre os interesses de antropólogo e informante, como pode o pesquisador esperar um retorno voluntarioso por parte dos pesquisados? Como evitar uma autovalorização da pessoa do pesquisador diante de contextos por vezes marcados pela miséria? Até que ponto a empatia entre ambos é real, necessária e sincera, e não apenas uma possível saída para o dilema? Segundo Geertz, existe, por conseguinte, esta
enorme pressão tanto sobre o pesquisador quanto sobre seus pesquisados para encararem essas metas como próximas, quando, na verdade, são distantes; como certas, quando meramente desejadas; e como alcançadas, quando, no máximo, houve uma aproximação delas. Essa pressão deriva da assimetria moral inerente à situação de trabalho de campo. (p. 40)
Institui-se assim entre antropólogo e pesquisado este edifício de "ficções parciais que são mais ou menos percebidas", o trabalho de campo vai se desdobrando quase como uma "experiência educativa" ao tato nos relacionamentos, diante muitas vezes do ambíguo e do implícito nas atitudes e pensamentos das figuras envolvidas, dos pesquisadores envolvidos, esses como partes, inclusive, da cultura estudada.
Em tom de conclusão à reflexão sobre tal dificuldade i) de apresentar o problema e possuir o poder para sua resolução, e ii) sobre a tensão moral existente entre pesquisador e pesquisado, Geertz chama a atenção para que a necessidade analítica da investigação social não anule a necessidade de o pesquisador considerar-se moralmente comprometido com a atividade que desempenha. Se há qualquer tipo de "fuga" pelo cientificismo ou subjetivismo na prática, o autor conclui que é porque a tensão se torna insuportável, em detrimento da própria consciência da humanidade do pesquisador ou da racionalidade do projeto. Caberia então a todo estudante de ciências sociais buscar abarcar fatos e valores dentro de uma mesma experiência, apostando que, antes de se anularem, possam ser equilibrados, ainda que dentro de uma abordagem racional. Ao invés de uma saída à francesa, propõe-se um espaço para a honestidade junto à "descrição densa" da cultura enfocada, revelando assim os contornos mais tênues que estão implicados na experiência da etnografia, para além de um formalismo inteiramente deslocado da realidade pesquisada e vivida.
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