“Outra coisa, não disse Cunhambebe, o chefe tupinambá, quando Hans Staden, vendo-o saborear uma perna de inimigo, argumentava aterrado que sequer as bestas selvagens comiam seus semelhantes. Com humor, algo Zen, Cunhambebe apontou para o abismo que o separa do europeu. Não disse: não, isto que como, meu inimigo, não é meu semelhante, é um animal…Ele disse: Eu sou o inimigo, Eu sou um jaguar; e está muito gostoso“. (Viveiros de Castro, 1984).
Eduardo Viveiros de Castro ao etnografar os povos ameríndios, observa que cada ser é um centro de perspectivas no universo e todo acontecimento é no mínimo dois. Dessa forma, Viveiros de Castro é o primeiro antropólogo a abordar as relações entre os seres pertencentes à cosmologia dos ameríndios através do perspectivismo, e o resultado desse trabalho trouxe contribuições para o campo da antropologia, que até então seguia teorias relativistas que não poderiam ser aplicadas para uma relação tão complexa quanto as existentes entre os ameríndios e os seres que fazem parte das suas relações.
O relativismo corresponde a uma análise tipicamente ocidental, e defende que certos princípios organizadores sociais (como a moral) são fatores resultantes da cultura, e que todas as interpretações são reais dentro de realidades diferentes. Enquanto o perspectivismo pressupõe que toda percepção tem lugar a partir de uma perspectiva que é alterável, ou seja, existe uma única realidade que é alterável conforme a perspectiva de cada um frente à realidade.
Nas cosmologias indígenas o mundo é povoado por muitas espécies (humanos e não humanos) e o mundo está dotado de consciência e cultura, e cada espécie se vê como humano e as demais como não humanas, e nesta relação às espécies atribuem sentidos diferentes que dialogam entre si e com todos os acontecimentos. Este é um circunstancialismo, onde todo mundo é humano de antemão.
O relativismo coloca o antropólogo em condição desigual com o nativo, pois este quando denomina o outro por nativo já pressupõe que existe uma condição desigual de interpretar o universo, e o antropólogo é aquele que toma a palavra discursiva para interpretar o sentido do outro, transformando-o em matéria que não detém sentido do seu próprio sentido, como ressaltou o autor em “O nativo relativo”. Eduardo Viveiros de Castro polemiza essa questão e propõe ao antropólogo inverter o jogo, ou seja, abdicar da sua posição de “conhecimento de causa” para tornar-se o observado, a fim de observar os sentidos atribuídos pelo outro em suas relações com os sujeitos, e é a partir da observação do ponto de vista dos índios sobre o ponto de vista que um universo de relações dotadas de sentidos começam a aparecer para o observador. Em “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”, Eduardo Viveiros de Castro enfatiza que a capacidade de ocupar um ponto de vista depende do grau e da situação, alguns não humanos atualizam a “personitude” e “perspectiva” de modo mais completo.
O perspectivismo raramente se aplica em extensão a todos os animais, geralmente ocorre com grandes seres predadores, tais como o jaguar, a sucuri, ou sobre presas típicas humanas, como os peixes e os veados por exemplo. A oposição comum entre os humanos e os animais, não é a animalidade, e sim a humanidade, para os ameríndios a humanidade é uma condição, o que deixa em evidência um aspecto importante sobre os ameríndios: a distinção entre espécie e condição.
Existe uma valorização simbólica da caça por esta representar o campo onde as interações entre os humanos e não humanos se relacionam.
Observando os Jurunas, percebe-se que eles são para os porcos uma espécie de inimigo e portanto um não humano (e por isso os Jurunas são caça para os porcos). Enquanto para os Jurunas os porcos pertencem à atividade da caça, e é através dela que se concretiza a relação com os porcos. A relação dos porcos com os Jurunas está dotada de significado para ambas as partes, pois enquanto os porcos para os Jurunas representam perigo por entenderem que os Jurunas são inimigos não humanos, os porcos para os Jurunas representam espíritos não humanos. Os Jurunas pensam que os porcos pensam que são humanos, e por eles saberem que não são, sabem do risco que é esta interpretação dos porcos para eles. É correto afirmar que os porcos estão para os Juruna assim como os Juruna estão para os porcos.
A onça, por exemplo, se vê como humano e não nos vê como humano (nós nos vemos como humanos) e estas são duas perspectivas que dialogam através das experiências de cada parte, diferente do relativo que depende do tempo e do espaço. No perspectivismo ameríndio uma relação social é uma relação entre sujeitos, mesmo quando as espécies são diferentes elas dialogam atribuindo diferenças entre si.
Eduardo Viveiro de Castro enfatiza que o xamanismo também tem uma valorização singular, pois os xamãs possuem a habilidade de “cruzar deliberadamente as barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades alo-específicas de modo a administrar as relações entre estas e os humanos”.p.231.
O xamanismo é uma forma de agir que implica um modo de conhecer, e conhecer é um personificar, “tomar o ponto de vista do que quer se tornar conhecido”, ou seja, do outro sujeito ou agente e a forma do outro é a pessoa.
Para os ameríndios existe a unidade de espíritos e a diversidade de corpos, a cultura seria a forma do universal e a natureza ou o objeto a forma do particular.
O autor se distancia do antropomorfismo e afirma que todos os seres veem o mundo da mesma maneira, o que muda é o mundo que eles veem e dessa forma Eduardo Viveiros de Castro distancia sua abordagem também do relativismo cultural que supõe uma diversidade de representações (subjetivas e parciais). O perspectivismo não é uma representação, porque as representações são propriedades do espírito, mas o ponto de vista está no corpo. O corpo possui uma importância, e sua forma visível é um signo importante, e é composto não pela sua fisiologia e sim por um conjunto de modo der ser que resultam no habitus, e por isso muitas vezes o corpo pode ser enganador, quando a aparência de um humano pode estar ocultando uma afecção-jaguar, por exemplo. A diferença dos corpos só pode ser captada pelo ponto de vista exterior, uma vez que para si mesmo, cada sujeito possui uma forma humana, portanto o corpo é a origem das perspectivas.
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