domingo, 13 de agosto de 2017

Os deuses canibais – notas sobre a cosmologia dos Araweté



Viveiros de Castro enfatiza que a abordagem desta sociedade é o complexo de relações entre os humanos e os espíritos, e a morte é o lugar onde a “pessoa” Araweté se realiza. Os humanos (bidé) encontram-se no centro de um movimento da cosmologia que compõe o universo. Pelo movimento não estático que se define a cosmologia Araweté, torna-se impossível descrevê-los ou analisá-los utilizando os termos sobre a noção de pessoa utilizada por Marcel Mauss, pois eles não se definem como substancia acabada, e sim com um processo em constante movimento.

Entre o plano terrestre e o céu, encontram-se os bidê (humanos), e no céu encontram-se os deuses Mai, que são espíritos não terrestres, divindades que possuem a ciência da imortalidade. Os Ayí são espíritos ferozes que atacam bidés e vivem na terra, mais especificamente habitando as matas. Embora pareça evidente que existe uma relação de oposição e complementaridade entre as partes, não é isso que ocorre na dinâmica entre os dois mundos, instaurado pelo constante devir. No plano celeste também existe numerosas divindades ferozes que comem a alma dos mortos, entre eles os Mai heté que são associados à primitividade. O código canibal representa a cerne da estrutura Araweté, uma vez que eles não comem carne humana, eles comem a carne do inimigo como ato de coragem. Quando bidé encontra um Ayí deve matá-lo e comer sua carne, tornando-se mais forte e aquilo que era seu inimigo, portanto perigoso para os demais. O guerreiro então ficará de resguardo, com a barriga cheia de sangue inimigo, e quando este guerreiro morre o espírito do inimigo sobe junto com ele, causando medo aos May, se transformando em divindade sem passar pela devorarão. Assim, bidé tornou-se Ayí e no plano celeste se transforma uma categoria específica de May. Esse processo não ocorre com todos os mortos terrestres, quando se trata de um não matador, bidé ao morrer e subir ao plano celeste, torna-se automaticamente Ayí para May, pois é como se fosse um estrangeiro, que precisará ser devorado pelos deuses e depois será ressuscitado por meio dos ossos. Os mortos transformam-se em alma terrestre ou celeste e é na morte que a “pessoa” Araweté se instaura, portanto a identidade é um constante “tornar-se outro”, é através dela que o canibalismo fundamenta-se como um ato crucial para o eterno devir Araweté em que os deuses são o “nós”, e o humano enquanto morto o inimigo. A vida na morte não é algo negativo, e sim um processo de transformação, onde os verdadeiros bidé são os May, e a pessoa está sempre em um processo de construção. Como ressalta Viveiros de Castro, o canibalismo é a aliança entre os vivos e os mortos, e os deuses “são sempre definidos como os que comem: na terra a comida dos homens; no céu, os próprios homens”.

Ps: Observações feitas após ler o texto Deuses Canibais de E. Viveiros de Castro.

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